1968, um ano de protestos e aprendizados

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 17/11/2023 - Publicado há 6 meses

1968, há 55 anos, “o ano que não terminou”, como classificou em livro o inspirado jornalista carioca Zuenir Ventura, foi de triste memória para os estudantes da época – como, aliás, para todos os brasileiros.

Em 28 de março, foi assassinado pela polícia carioca o estudante Edson Luís, num episódio de protestos em torno do restaurante Calabouço, no qual centenas de secundaristas faziam refeições diariamente. O protesto seria contra o aumento dos preços dos pratos de comida. A morte violenta de Edson Luís deflagrou manifestações estudantis em todo o País.

Saltando um pouco no tempo daqueles dias tensos, em que protestos e passeatas contra o regime se repetiam em várias partes, em outubro abre-se uma série de eventos dos quais a Universidade de São Paulo foi importante epicentro.

• A Batalha da Maria Antônia, então ainda sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 2 de outubro, que resultou em seu fechamento e transferência dos cursos para a Cidade Universitária;

• O Congresso da UNE, em 13 de outubro, em que o Conjunto Residencial da USP, o Crusp, foi importante ponto de reunião e partida de estudantes de todo o País para a pacata cidade de Ibiúna, onde o encontro se daria;

• A invasão pelo Exército e pela polícia e expulsão dos alunos residentes do Crusp, eu entre eles, em 17 de dezembro, cinco dias depois da decretação do Ato Institucional n° 5.

O molde da USP

Eu era aluno da Escola Politécnica desde 1967 e vivenciei todos esses acontecimentos, só não participei in loco do Congresso da UNE. Em meio a esse torvelinho político, descobri tardiamente que a Poli não era a melhor opção profissional para mim e entrei na Escola de Comunicações e Artes (ECA), onde me diplomei em Jornalismo em 1974. Na Poli, dirigi o Grupo Teatral Politécnico e editei o Poli Campus. Quando na ECA, já comecei a trabalhar em redações no primeiro ano da escola, a que se seguiram passagens pelos principais veículos de comunicação do País. Mas, ressalto, a minha visão política e filosófica do mundo foi formada ao frequentar e participar da vida da Universidade de São Paulo.

Algumas lembranças pessoais daquele ano que “não terminou”.

Estava almoçando no restaurante do Crusp no dia 2 de outubro, quando um estudante, vindo de fora, começou a berrar que a Maria Antônia estava sendo atacada por estudantes da vizinha Universidade Mackenzie (ficavam, diagonalmente, uma frente à outra) e começara uma batalha de bombas molotov que cruzavam a rua, atingindo as duas. “Fretamos” (um eufemismo) na marra um circular da USP (pequenos ônibus Mercedes-Benz, cor creme com tetos pretos) e fomos socorrer os colegas.

No fragor da batalha, molotovs voando de um lado para outro, de repente um tiro atinge o secundarista José Guimarães, que faleceu ali mesmo. Com sua camiseta ensanguentada como porta-bandeira, nasceu no mesmo momento uma passeata que percorreu o centro da cidade, virando carros de polícia que, inadvertidamente, apareciam em seu caminho.

Ao final da história, um pelotão da Força Pública, que estava estacionado, há horas, numa esquina da Maria Antônia, desceu a rua e invadiu o prédio da Faculdade de Filosofia. Nesse imbróglio a enxurrada levou também a Faculdade de Economia, que ficava na Rua Dr. Vila Nova, praticamente uma atrás da outra.

Os cobertores rajados do Crusp

O fechamento da Maria Antônia engordou as atividades de política estudantil já abundantes no Crusp, com a multiplicação dos muitos debates e assembleias que ali ocorriam – eu e meus amigos apressávamos os estudos para as duras e exigentes provas da Poli para poder acompanhar as assembleias.

A realização do Congresso da UNE em Ibiúna, a 13 de outubro, atraiu centenas de participantes a caminho do encontro, vindos de outras cidades e estados para pernoitar no Crusp. Nas vésperas do encontro, viam-se estudantes que pegariam as conduções para Ibiúna, esperando as caronas, na região de Pinheiros, especialmente na Rua Teodoro Sampaio, carregando, no meio da bagagem, os tradicionais cobertores com listas vermelhas ou marrons dos apartamentos do Crusp. O local da realização do Congresso, àquela altura, era um segredo de polichinelo e a polícia rapidamente prendeu os participantes. De quem teria sido a ideia de comprar duzentos pãezinhos, para o café da manhã, em padarias da pacata Ibiúna?

1968 acabou, no Crusp, com a sua invasão em 17 de dezembro, cinco dias após a decretação do AI-5, que aferrolhou ainda mais as atividades políticas no País, com consequente fechamento das duas casas legislativas federais. Nós, moradores, fomos levados em ônibus da Companha Municipal de Transportes Coletivos para o Presídio Tiradentes, na avenida de mesmo nome, que atualmente não existe mais. Eu e um amigo próximo, Luís Carlos, colega de Poli e GTP, e muitos outros fomos liberados na manhã seguinte. Vários continuaram ali, passando por interrogatórios antes de serem liberados ou não.

Solidificar um regime democrático e inclusivo

Todas essas histórias, e muitíssimas outras, envolvendo certamente infindáveis e orgulhosas sobre filhos e netos, estarão nas conversas que ex-cruspianos, do período 1964-68, expulsos em 17 de dezembro deste último ano, terão na Festa de 55 anos (da expulsão), que se realizará nos próximo dia 25 de novembro, aqui em São Paulo, no Colégio Notre-Dame. Trata-se de uma formidável turma de formandos da USP que dividiram parte de suas vidas de jovens estudantes no Crusp, antes de dar notáveis contribuições (com espírito crítico, é claro) para o desenvolvimento deste Brasil – acumulando alegrias e frustrações, profissionais e políticas, nos complicados caminhos deste país.

1968 foi um ano de notáveis, conflituosos, muitas vezes amargos, aprendizados, no Brasil e no mundo. Aqui, no Brasil, a seguinte década de 1970 foi politicamente dolorosa. As muitas lições duras da época ajudaram a desbravar os caminhos políticos em busca da democracia, que só começou a despontar nos anos 1980.

Hoje, vivemos em uma democracia, com altos e baixos, estes especialmente no governo anterior. Mas repleta de lições sobre os melhores caminhos a percorrer para solidificarmos um regime democrático e inclusivo para todas as faixas da população brasileira – num momento em que o mundo convive com guerras e disputas que, há muito, deveriam estar registradas só nos livros de História.

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.