Fourier: transmissão de calor ou arquitetura de vidro?

Por José Roberto Castilho Piqueira, professor da Escola Politécnica da USP

 03/04/2024 - Publicado há 1 mês

Nos meus tempos de gestor na Universidade, participei de vários tipos de comissões didáticas e administrativas que me permitiram conhecer colegas das mais diversas áreas de conhecimento. Nessas reuniões, docentes ligados às humanidades me ensinaram a curtir férias em cidades litorâneas com poucas alternativas de lazer, além da praia.

A receita: montar uma pilha de livros de um metro e meio de altura, de assuntos não diretamente ligados ao trabalho cotidiano, e tentar a diversão adquirindo algum conhecimento. Confesso que considerei a receita interessante e tentei segui-la: não fui para o litoral, mas montei minha pilha.

Peter Burke, Eugênio Bucci, Gilles Deleuze, Domenico de Masi e Ulisses Capazzoli estavam me esperando, enquanto curtia Walter Benjamin e descobria o filósofo François Marie Charles Fourier (1772-1837), que, como estou acostumado com equações a derivadas parciais, fiquei pensando que talvez se tratasse do mesmo Fourier tantas vezes citado nos cursos de engenharia, nas diversas modalidades.

Entretanto, a rede mundial de computadores (internet) e de páginas web (www) não serve só para sessões de autoajuda, e me permitiram aprender que o Fourier, cujas equações eu conhecia, é Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830).

Charles e Joseph Fourier, franceses e vivendo na mesma época, transformaram-se em figuras notáveis em ramos do conhecimento próximos. Talvez, naquela época, estudar questões sociais e habitacionais fosse atividade muito distante da transmissão de calor e construção de máquinas térmicas.

Charles Fourier transformou os locais de comércio da Paris do início do século 19 em locais de moradias (falanstérios), privilegiando os aspectos humanos com a utopia da Arquitetura de vidro. Hoje, vivendo o século 21, o progresso na engenharia de materiais se deve, em grande parte, às análises de espectrografia, baseadas nas séries e transformadas de Fourier (Joseph).

Esses novos materiais, duráveis, de fácil manutenção e permitindo projetos modulares, proporcionam obras menos custosas, viáveis para as populações pouco privilegiadas, criando situações positivas de vivência coletiva, aproximando Charles e Joseph em benefício da vida.

Joseph Fourier faz parte da vida de todo engenheiro mecânico ou eletrônico. Nas telecomunicações, as primeiras aulas são sobre sua matemática. Daí seguem: modulação, demodulação, processamento de sinais e toda a infraestrutura de computação e comunicação do chamado mundo globalizado.

Em uma pequena reflexão sobre a ciência com ares de multidisciplinaridade que se faz hoje, encontro Edgar Morin que ligaria os saberes dos Fourier, combinando filosofia, arquitetura e engenharia, com uma visão de realidade acurada e cuidadosa, descrita de maneira preciosa na obra de Carlo Rovelli.

A globalização das comunicações, em uma visão utópica, talvez pudesse proporcionar um caminho para o aprimoramento da vida no planeta, integrando máquinas à natureza, trazendo dignidade global, como sonhava Charles Fourier.

Parece que, em meio a distopias, essa utopia está emergindo, com a mente humana aprimorando-se pela convivência com as máquinas e a natureza.

Com essa perspectiva, volto à minha pilha.

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