Fake news e liberdade de expressão

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 13/06/2023 - Publicado há 1 ano

“O problema com a mentira e
o engodo é que só são eficientes se
o mentiroso e o impostor têm uma clara ideia da verdade
que estão tentando esconder.”
Hannah Arendt (A mentira na política)

Suscitada pela polêmica em torno da regulação das plataformas digitais, por meio do Projeto de Lei 2.630/2020, mais conhecido como PL das fake news, a discussão a respeito do impacto da comunicação on-line sobre a democracia está de volta. A diferença entre o passado e o presente está no modo como essa discussão evoluiu.

Há mais de 20 anos, a chegada da era digital e das plataformas de comunicação foi recebida como uma grande oportunidade para aprofundar a democracia na transição do século 20 para o século 21. A ideia era que quanto mais os cidadãos recebessem informações e tivessem capacidade de ouvir, menos vozes marginalizadas ou ignoradas haveria. Em pouco tempo, porém, ficou claro que a democratização do acesso à informação abriu caminho para o paradoxo da desinformação, para a manipulação e para o engodo, tanto em decorrência dos abusos cometidos em nome da liberdade de expressão quanto pela própria natureza dos novos espaços públicos.

Em vez de aprofundarem a democracia, a comunicação on-line e a expansão da era digital a perverteram. Não só empobreceram a ação cívica, como aumentaram o poder de elites não representativas no controle da distribuição de informações e de ideias. Também corroeram os processos competitivos que, de algum modo, tornavam mais transparentes as tradicionais empresas de comunicação. Além disso, a audiência geral foi se estilhaçando à medida que a diferenciação da indústria de comunicações se diversificou em diferentes nichos – do político ao cultural, do econômico ao de entretenimento, e assim por diante.

No campo do jornalismo, por exemplo, a multiplicação de produtos simbólicos estratificados fez com que a mídia tradicional perdesse seu caráter original de comunicação de massa. No campo do direito, passou-se a discutir como as pessoas podem ser legalmente iguais, como prevê a Constituição, se cada vez mais são social e culturalmente desiguais. No campo da política, a participação numa pluralidade de espaços públicos foi substituída por pesquisas de opinião pública. E como não há transparência sobre o que acontece nas plataformas digitais e não se sabe ao certo quais são os filtros por elas utilizados e como classificam os conteúdos, na vida social as pessoas passaram a pensar sob a forma de estereótipos.

Por fim, a percepção de que uma parte significativa das informações consumida pela população é enganosa foi naturalizada – ou seja, tida como um novo normal. Mentiras, informações falsas, afirmações ambivalentes e expressões com justaposição de sentidos vão se sucedendo umas às outras em enorme velocidade e numa relação de causa e efeito, convertendo-se em narrativas verossímeis. O resultado é, por um lado, a crescente perda de credibilidade do que é publicado. E, por outro, o aumento do número de analistas simbólicos e “pensadores midiáticos” que decifram ou traduzem os fatos para os leigos.

É por esse motivo que a vida política se transformou numa espécie de mercado onde os cidadãos comuns pensam com base no que lhes é dito por quem controla a produção de sentido, percepção e expressão do mundo social. Isso explica como o bolsonarismo, que sempre agiu com base na mentira e com flagrante má fé, não encontrou dificuldades para arregimentar um bando de cretinos para afrontar as instituições e tentar um golpe de Estado no dia 8 de janeiro deste ano.

Como a liberdade de expressão é um dos pilares da democracia, tentar regular as redes sociais para combater a desinformação advinda de fake news, como pretende o PL 2630/2020, sempre envolve riscos. Ele tenta conter o poderio econômico das grandes empresas de tecnologia e responsabilizar plataformas como Facebook, Google, Telegram e Twitter pela disseminação de conteúdo criminoso. Nos tempos mais duros da pandemia, aproveitei o confinamento para dar uma palestra por meios virtuais sobre três importantes problemas apontados pela literatura a respeito desses riscos.

O primeiro problema é de natureza epistemológica: como definir em termos objetivos a diferença entre opinião e notícia equivocada, de um lado, e mentira expressa e acintosa, de outro? Esse é o problema da verdade, como lembram os especialistas em filosofia e comunicação.

O segundo problema é de legitimidade. Quando se justifica a tomada de medidas contra quem dissemina fake news de modo consciente e deliberado, seja incitando a animosidade das Forças Armadas contra os Poderes constitucionais, seja promovendo discriminação racial e de gênero, seja repassando pornografia infantil? Quem está formalmente apto a tomar essas medidas? Esse é o problema da autoridade para definir o que é falso e proibir sua disseminação pelas redes sociais, como lembram os cientistas políticos.

O terceiro problema é de natureza legal. Ele envolve a tensão entre a liberdade de expressão assegurada pela Constituição e a dificuldade de definir objetivamente a distinção entre o que é apenas uma informação equivocada e o que é uma informação falsa e de má fé. Impossível de ser resolvido de modo preciso, pois sempre haverá uma zona cinzenta entre essas condutas. Esse é o problema que os teóricos do direito chamam de aporia jurídica.

Esses três problemas mostram os riscos inerentes à tentativa de se tomar providências jurídicas para evitar que a democracia seja corroída por fake news. Se o equívoco é compatível com ela, o falsificado a corrói, na medida em que, como lembrava Hannah Arendt em seus conhecidos ensaios sobre a mentira e a verdade na política, mina as instituições e o próprio espaço público da palavra e da ação.
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