A invenção da USP, um ato intencionalmente revolucionário

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 26/02/2024 - Publicado há 2 meses

Os pouco mais de 8 mil jovens que passaram no vestibular da Fuvest de 2024 estão entrando pela primeira vez nas salas de aula dos diferentes institutos e faculdades da Universidade de São Paulo. São os alunos da primeira turma da década do centenário da USP.

Eles terão a responsabilidade de levar adiante a tocha flamejante do conhecimento científico e humanístico que dará continuidade à missão histórica de vencer e superar a persistente herança da mentalidade da escravidão. A do Brasil atrasado de um capitalismo retrógrado e anticapitalista, que libertou juridicamente o negro, mas não emancipou social e politicamente pretos, pardos e mesmo brancos. Os disfarçados filhos das diferentes escravidões que tivemos e temos tido.

A criação da USP, em 1934, foi um ato intencionalmente revolucionário, uma resposta à derrota paulista, pelo governo Vargas, na Revolução Constitucionalista de 1932, contra os intuitos ditatoriais de militares e civis de setores do governo provisório da Revolução de Outubro de 1930.

Um autoritarismo de tutela do povo pelo Estado já estava claramente proposto nos documentos encontrados pela facção legalista do Exército, na Revolução de 1924, em São Paulo. Na “república” dos revoltosos do mesmo Exército na Rua Vautier nº 27, no Canindé, perto da Luz. O que lembra uma carta do padre Manoel da Nóbrega, de 1557, em que diz que os indígenas são “gente servil que se quer por medo e sujeição”.

Um monumento de bronze na entrada da Cidade Universitária homenageia Armando de Sales Oliveira, que era o interventor federal no Estado de São Paulo e que assinou o decreto de criação da USP. O oficialismo burocrático de repartição pública, porém, não se lembrou de erguer um monumento ao inventor da USP, o jornalista Júlio de Mesquita Filho, seu cunhado.

A Universidade foi concebida nas reuniões noturnas da redação do jornal O Estado de S. Paulo, após o fechamento da edição do dia seguinte. Mesquita ali reunia um pequeno grupo de intelectuais de cujas conversas foi brotando a concepção de uma Universidade de São Paulo. Preso por ter apoiado a Revolução de 1932, na prisão tomou as decisões que viabilizassem a definição do seu formato.

Na prisão, Júlio de Mesquita Filho pediu à esposa, Marina, que lhe levasse dois livros do sociólogo francês Émile Durkheim, um dos quais tratava de educação. A sociologia durkheimiana tem como um dos seus problemas de referência a questão da anomia, que resulta da supressão de normas sociais em situação de transição social.

Enquanto não fosse construída uma Cidade Universitária, os diferentes departamentos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP seriam instalados em edifícios públicos já existentes que pudessem dispor de áreas a serem por ela utilizadas.

Uma das primeiras providências foi a de escolher o terreno para a construção da Cidade Universitária, para que sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a alma da Universidade, tivesse suas próprias salas de aula, bibliotecas e laboratórios. Paulo Duarte, um dos criadores e entusiastas da USP, sugerira a Fazenda Butantã, só parcialmente ocupada pelo instituto desse nome.

Paulo Duarte e Júlio de Mesquita Filho acompanharam Armando de Sales Oliveira na visita à fazenda para avaliar a possibilidade de construir ali a Cidade Universitária. Nos fundos do instituto, onde um portão dá de frente, hoje, para o Prédio de História e Geografia, entraram no local. Avaliaram a extensão do terreno, imaginaram a localização dos edifícios das distintas escolas, sonharam a USP em seu lugar definitivo.

A Fazenda Butantã fora originalmente a sesmaria concedida, no século 16, ao minerador Afonso Sardinha, que descobriu ouro de aluvião na área do Pico do Jaraguá, a primeira mina de ouro do Brasil.

Ele tinha um filho que se tornara jesuíta. Em consequência, levou para a Companhia de Jesus a herança recebida dos pais, entre elas aquelas terras. Quando no governo do Marquês de Pombal os bens jesuíticos foram confiscados, elas se tornaram bem do Reino. Com a Independência, tornaram-se bem da Província e, depois, do Estado de São Paulo.

Outra coincidência histórica foi a dos primeiros combates da Revolução Liberal de julho de 1842, ao pé do Morro do Butantã, e à margem do ribeirão Pirajuçara, onde é hoje a entrada da Cidade Universitária. Ali tombaram sete revoltosos liberais, atacados pelas tropas do Exército sob comando do Barão de Caxias. A poucos passos do lugar por onde entraram Armando de Sales Oliveira, Júlio de Mesquita Filho, Paulo Duarte e outros para decidir que a Cidade Universitária seria ali.

O que, de vários modos, faz do território da Cidade Universitária o território simbólico de transformações históricas significativas e, portanto, da invenção da Universidade de São Paulo como a invenção poética do possível de um país. A de um Brasil que pensa seu futuro como o futuro das novas gerações.

Num discurso de paraninfo de uma das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Júlio de Mesquita Filho ressaltou, mais uma vez, a consigna de que a USP deveria ser uma universidade pública, laica e gratuita. Uma universidade, portanto, que acolhesse com liberdade, livre de ideologias, a pluralidade das ideias e do conhecimento, e a diversidade das vocações de produção do saber.

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