Jornalismo, esse “perigoso” aliado da ciência e da democracia

Por Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do Jornal da USP

 22/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 20/09/2022 as 14:51

Em julho de 2016 eu caminhava pelos corredores da Universidade Federal do Sul da Bahia, em Porto Seguro, cobrindo a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), quando dei de cara com o então presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Hernan Chaimovich. “Cuidado que esse aí é perigoso”, disse o professor aos seus assistentes, logo que eu me aproximei, bloquinho e caneta em mãos, sempre pronto para uma entrevista.

À época eu trabalhava para o Estadão, jornal ao qual dediquei quase 20 anos da minha vida. Confesso que fiquei incomodado com o comentário no início; mas hoje entendo que foi um elogio — embora embrulhado numa ironia ácida que é característica do Hernan, um bioquímico e Professor Emérito do Instituto de Química da USP, com uma longa ficha de contribuições para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil. (Aliás, aproveito para devolver o elogio e dizer que ele é um dos cientistas mais “perigosos” deste país, no melhor sentido da palavra.)

“Perigoso”, nesse caso, significa “qualificado”; alguém que sabe fazer perguntas e não aceita qualquer baboseira como resposta. Faço esse relato aqui não com o intuito de me autoelogiar, mas de chamar atenção para a importância do bom jornalismo — que muitos colegas de profissão, felizmente, insistem em seguir praticando por aí, a despeito de todas as adversidades (trabalhistas, salariais, políticas, ideológicas, etc.). Não é por acaso que governos autoritários colocam a imprensa, e o jornalismo, sempre como um de seus inimigos prioritários: porque o jornalismo, quando bem feito, é mesmo muito perigoso para aqueles que dependem da ignorância, do medo e da desinformação para se consolidar no poder. Uma sociedade bem informada é uma sociedade empoderada. Por isso a liberdade de imprensa é uma pedra fundamental da democracia, e uma pedra no sapato dos tiranos. Mesmo imperfeita, ela é fundamental.

No campo da ciência, pelo qual eu transito com maior frequência, o jornalismo também exerce (e seria bom que exercesse com mais intensidade) o papel fundamental de informar à sociedade, não só sobre as maravilhas que a ciência produz — na forma de novas tecnologias e descobertas (smartphone, medicamentos, dinossauros, galáxias, etc.) —, mas também sobre a importância dessa atividade para o desenvolvimento social e econômico da nação. Os países mais desenvolvidos não investem mais em ciência e tecnologia só porque têm mais dinheiro; é justamente o inverso: eles são mais ricos, entre outras coisas, porque investem mais em ciência e tecnologia! A China (mesmo sem democracia e sem liberdade de imprensa) acordou para isso alguns anos atrás e fez a lição de casa: aumentou seus investimentos em ciência e tecnologia, repatriou cientistas que estavam no exterior, turbinou a formação de novos talentos nas universidades, qualificou sua indústria, e hoje rivaliza com os Estados Unidos pelo título de maior potência científica, tecnológica e econômica do planeta. Enquanto isso o Brasil anda para trás, cortando investimentos, escamoteando a ciência, sucateando suas universidades e afugentando seus cérebros. Faz pelo menos seis anos que o orçamento federal destinado à ciência e tecnologia só encolhe*.

Voltando a 2016, na reunião da SBPC em Porto Seguro, Chaimovich fez uma apresentação em que exaltava a importância da ciência e tecnologia, e já alertava para os riscos associados ao baixo investimento público nessa área no País. Mal sabia ele (nem ninguém poderia imaginar) que a coisa ainda ficaria muito, muito pior nos próximos anos, com laboratórios e universidades públicas vivendo à beira de um apagão — tanto no sentido figurado quanto literal, pois muitas não têm dinheiro nem mesmo para pagar a conta de luz, muito menos fazer pesquisa.

Como reverter isso? O caminho é longo e as variáveis são muitas, mas não há dúvida de que a boa comunicação da ciência é parte essencial dessa solução; começando pela sala de aula e chegando até as manchetes dos jornais, com o apoio (cada vez mais poderoso) da boa divulgação científica nas redes sociais. Os orçamentos da Ciência e da Educação precisam ser recompostos com a maior urgência possível, antes que as luzes se apaguem, mas é essencial entender que essa recomposição só será sustentável a médio e longo prazo se a pressão pela sua manutenção for construída de baixo para cima. Se a sociedade não enxergar a ciência como prioridade, os políticos jamais enxergarão. A importância da ciência não é óbvia, como muitos cientistas pensam; ela precisa ser explicada.

A pandemia de covid-19 escancarou essa importância da forma mais visceral possível, e o jornalismo fez a sua parte. Por dois anos, a ciência ocupou o topo do noticiário, e é essencial que ela permaneça como protagonista na pauta da imprensa — e que o jornalismo científico não se limite a falar de telescópios e dinossauros —, pois as fake news e as teorias da conspiração que tantas vidas nos custaram durante a pandemia certamente não desaparecerão. Esse é o grande perigo, que precisamos enfrentar com urgência. Porque, como diz o professor Hernan, “a ciência brasileira é resiliente, mas está no limite”.

*Houve um aumento significativo no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) em 2022, mas é importante ressaltar que isso se deu a contragosto do governo federal, graças a uma nova lei, formulada por cientistas e aprovada no Congresso, que proíbe o contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), e que o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia tentaram driblar de todas as formas possíveis. Conseguiram em 2021, mas não em 2022.

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