No ambiente organizacional, será que, como dizia Tina Turner, “we don’t need another hero”?

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 08/03/2024 - Publicado há 2 meses

Tina Turner foi uma artista incrível, e algumas de suas músicas ficam nos nossos ouvidos mesmo quando não estão tocando. Na gravação de 1984, a música We don’t need another hero foi o tema de um filme diferente para a época e evocava uma figura que pudesse salvar ou liderar de forma muito forte pessoas num ambiente inóspito. E hoje? Precisamos de heróis em situações cotidianas?

Algumas vezes os impulsionadores de figurinhas e vídeos mandam coisas interessantes e úteis. Recentemente, recebi um vídeo de uma pessoa que colocou um armário enorme, bem pesado, inclusive com espelhos, algo em torno de 3 x 2 x 0,4 metros em cima de uma moto de pouca potência. Para isso, foram necessárias quatro pessoas, e o armário ficou escorado nas costas do condutor. A moto demorou para dar a partida, e o condutor seguiu um caminho, no início bem lento, mas, aos poucos, com velocidade, atravessando cruzamentos, ganhando velocidade em descidas, desviando de buracos e entrando em caminho de terra. Com uma das mãos, o condutor segurava uma cordinha que percorria o armário e, com a outra, conduzia a moto. Nenhum cuidado com a estabilidade do armário e mesmo com controle do peso, que recaía na coluna do condutor. A cena é impressionante e as pessoas começam a torcer para que nada de ruim aconteça! Por fim, o nosso herói conseguiu chegar… vivo e entregar o que se propôs.

Impressionante a raça, a coragem e a vontade do condutor, que seguiu em frente, mesmo com comentários nada encorajadores da plateia. Ele fez de tudo para atingir o objetivo de entregar um armário pesado, num local onde seria útil. Podemos considerá-lo um herói? Podemos incentivá-lo a se orgulhar pelo que fez e repetir a ação? Precisamos de pessoas com energia e atitude, mas quais os limites disso? Ao criticar a iniciativa, estaremos sendo justos? Afinal nem todos temos condições ideais para enfrentar desafios.

Bom, de cara, ele correu vários riscos com difícil ponderação: o armário poderia cair em cima dele, ou de alguém atravessando a rua. Pelo tamanho do armário, o risco de ferir ou mesmo matar alguém seriam possibilidades não descartadas. Esse seria o risco tipo A. O armário poderia cair e ser destruído, assim como poderia danificar a moto pelo excesso de peso ou por choque. Ou ainda perder o controle e bater num carro ou numa casa, danificando a moto e outros ativos. Esse seria o risco tipo B.

Sem muitas especulações, o condutor poderia ter a coluna afetada, imediatamente ou não, mas de forma muito grave pois todo o peso do armário foi escorado precariamente nas costas por alguns minutos. Risco do tipo C. Esses três riscos poderiam proporcionar desfechos completamente diferentes com sensação de insucesso com consequências que poderiam afetar o longo prazo da vida do condutor e de pessoas a sua volta.

Como tratar essa situação de maneira a não perder a oportunidade e espaço para a criatividade, a inovação e a garra para correr atrás de algo muito importante a ser entregue? Por outro lado, como equilibrar o risco, evitando, mitigando ou fazendo trocas?

Podemos encontrar algumas semelhanças com organizações? Acredito que sim. Se aceitamos que a arte imita a vida, a vida imita a gestão e vice-versa. Algumas organizações acabam atuando de maneira semelhante ao nosso condutor: foco no curto prazo, no produto e pouca ênfase no processo, esquecendo a combinação entre eficiência e eficácia e ignorando completamente vários tipos de riscos inerentes às atividades desenvolvidas pelo condutor, enquanto não surgir alguma “dor”.

O risco do tipo A é muito grave pois afeta as pessoas, com algum impacto sobre a integridade física e a vida. Alguém pode ser afetado pelo produto ou serviço, e a visibilidade desse impacto nem sempre é clara e possível de ser associada a um evento, produto ou organização. Usar ativos fora de seus limites de segurança consiste em não ter respeito algum para com outros. Usar a moto para esse transporte é algo fora do pensável, mesmo para o mais inovador. Uma cordinha é tudo que equilibra a ação e uma das mãos é tudo que o condutor tem para ir em direção à sua trajetória. Em algumas organizações encontraremos as “cordinhas” sendo vistas como suficientes. Nem sempre estamos atentos ao impacto de danos às pessoas ao longo do tempo. No caso humano pode ser simplesmente irreparável, tanto no nível individual como no coletivo, por mais que se tentem reparações financeiras.

O risco do tipo B pode ser considerado de fácil percepção e mensuração na organização, referindo-se a ativos tangíveis ou não, visíveis e que têm vida útil razoavelmente conhecida. Serem utilizados de maneira adequada, dentro de limites que não criem riscos desnecessários e com preocupações com a sua manutenção ou restauração física e tecnológica. Nas organizações podemos encontrar alguns “armários enormes” sendo colocados sobre estruturas com as quais não são compatíveis, gerando algum tipo de dano hoje, amanhã ou depois de amanhã.

Finalmente, o risco do tipo C se refere às lideranças nos mais variados níveis e, no longo prazo, destrói a organização, afetando as pessoas, mas agora do lado de dentro, de onde se alicerça a continuidade da liderança. Pode começar com metas utópicas que podem ser atingidas por meio de ações heroicas e que, muitas vezes, motivam as pessoas por estabelecerem novos patamares de resultados ainda não testados. Entretanto, a ausência de limites e a repetição vão gerando impactos negativos que nem sempre são visíveis e recuperáveis e um dia a sustentação deixa de existir. Pode ser uma dor que apareça com o passar do tempo, no caso do condutor da moto.

Em condições normais, as observações e os riscos A, B e C deveriam ser encontrados exclusivamente nas organizações novas, sem muita estrutura e experiência de vida, mas, nas megaorganizações, dadas a fragmentação e dificuldade de coordenação de estruturas internas complexas, cada área, divisão, pode se comportar também como um foco de problemas semelhantes ao do “armário”. No vídeo as pessoas se manifestaram sobre o risco e incerteza da trajetória, mas o condutor não deu bola. Às vezes, nas organizações o mesmo acontece.

Voltando ao problema em si, é muito importante trazer equilíbrio e tornar duradouros os benefícios da competência, eficiência, espaço para compromisso e dedicação não só no formalmente cobrado. Isso otimiza a visão de risco de uma organização pois precisamos de uma prática de gestão com profundidade e não superficial, principalmente organizando as atividades humanas no curto, médio e longo prazos. Aí o herói se encaixa e não precisa ser herói sempre, full time.

Pensando bem, tenho que discordar da Tina no que se refere ao ambiente organizacional: we need another heros, mas não é só isso. Temos que avançar sempre na estrutura de gestão para evitar riscos desnecessários que comprometam os resultados hoje, amanhã e depois de amanhã, entregando os armários da vida.

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