John Campbell McNamara: uma história de competência e dedicação

Por Flávio Alicino Bockmann e Francisco de Assis Leone, professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

 Publicado: 23/07/2024
John Campbell McNamara
Flávio Bockmann - Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal
Francisco Leoni - Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

No dia 8 de dezembro de 2023, o biólogo John Campbell McNamara, professor do Departamento de Biologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, partiu para mais uma longa jornada. Viagens para paragens distantes faziam parte da rotina do colega e amigo John. De tempos em tempos, ele retornava para sua remota terra natal, a Nova Zelândia, para visitar sua mãe, irmãos, outros parentes e amigos. Dessa vez, John, que nunca foi de alardear suas viagens, partiu de forma ainda mais discreta, sem poder colocar sua loção pós-barba na mala, sem tempo para muitas despedidas, levado para um diferente destino por um insistente linfoma.

John Campbell McNamara nasceu na temperada Christchurch, cidade da costa leste da Ilha Sul da Nova Zelândia, em 12 de março de 1953, filho de John e Patricia Louise McNamara. Passou a infância e a juventude caminhando por trilhas e se aventurando em passeios de motocicleta ao som do repertório inovador de Jimmy Hendrix e Pink Floyd. John se tornou Bacharel em Ciências pela Universidade de Canterbury, Christchurch, em 1973, onde também obteve seu mestrado, três anos mais tarde. Foi mobilizado pela sua inata ousadia e rebeldia juvenil, e impulsionado pelo seu indomável anseio por conhecer ambientes naturais, que o neozelandês veio parar na longínqua América Central, no ano de 1977, de onde cruzou mais de 5.500 km pela América do Sul, até chegar em São Paulo, onde tomou contato, pela primeira vez, com a Universidade que leva o nome da cidade e estado. Logo mais, se encantou com Centro de Biologia Marinha, da USP, o Cebimar, situado em São Sebastião. Rapidamente se engajou no doutorado em Oceanografia, concluído em 1981, sob orientação do professor Plinio Soares Moreira, dando seguimento aos estudos iniciados na Nova Zelândia sobre a estrutura de cromatóforos de crustáceos. Ainda neste período, em 1984, no Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da USP, em São Paulo, que John conheceu a também bióloga Elaine Ribeiro, que viria a se tornar sua amada esposa e eterna companheira.

Se era pouco provável que um estrangeiro estabelecesse residência no país para fazer doutorado na década de 1970, em um Brasil fustigado pela cruel ditadura civil-militar, mais improvável ainda seria se esse visitante fosse oriundo da remota Nova Zelândia. Mas assim foi. Surpreendentemente, os esperados desafios de adaptação social, cultural e linguística foram superados com rapidez e tranquilidade, mas não sem a ajuda de sua esposa Elaine, que, com sua proverbial serenidade, desarmou o rígido formalismo de John, moldado por uma rigorosa educação religiosa anglo-saxã. As probabilidades foram novamente desafiadas, quando John e Elaine se mudaram para o interior do Estado de São Paulo em 1989, após John ter sido contratado como docente do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde estabeleceu o “Laboratório de Fisiologia dos Crustáceos” no Departamento de Biologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Apesar das diferenças culturais ainda mais marcantes, John estabeleceu uma estreita relação com Ribeirão Preto e região, expressa das mais diversas formas.

A sua conexão com a USP e, em especial, com o campus de Ribeirão Preto, foi admirável. Foi lá que deu continuidade à sua rápida progressão acadêmica, se tornando livre docente em 1997 e professor titular, o mais alto posto acadêmico na USP, em 2006. Foi um dedicado professor de disciplinas de fisiologia para a graduação em Biologia e a partir de 2016 se engajou em uma nova disciplina de graduação, “biologia de campo”, que o permitiu transmitir seu legado para os estudantes por meio de uma viagem de cinco dias para estudos no litoral paulista, no Cebimar, em uma espécie de uma volta às origens renovada. A produção científica de John não foi menos prolífica: foi autor de 136 artigos científicos e de quatro capítulos de livro. Se tornou uma das maiores autoridades mundiais em fisiologia comparativa de crustáceos, investigando principalmente, nos últimos tempos, a evolução dos mecanismos de equilíbrio da quantidade de água e dos sais minerais no organismo (osmorregulação) e a conquista dos ambientes de água doce pelos crustáceos.

A competência do professor McNamara se expressa pelas numerosas parcerias que fez com alunos e profissionais de diferentes setores da USP e de outras instituições, do Brasil e do exterior. O reconhecimento também veio em nível nacional, sendo detentor, por décadas, de bolsa de pesquisa do CNPq. Ao longo de sua carreira, John foi responsável pela formação de numerosos alunos, tendo orientado dez mestrados e onze doutorados. Muitos de seus discípulos são hoje docentes nas mais importantes universidades no país.

John nunca se furtou de suas responsabilidades institucionais. Pelo contrário, as apreciava porque as compreendia como parte indissociável da construção de uma universidade pública de excelência. Ao longo de seus quase 35 anos de dedicação à FFCLRP-USP, exerceu as mais diversas funções como gestor, tais como coordenador do programa de Pós-graduação em Biologia Comparada, de 2000 a 2007, presidente da Comissão de Pós-graduação, de 2004 a 2009, vice-coordenador da Câmara Curricular da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP, de 2008 a 2009, chefe e vice-chefe do Departamento de Biologia, de 2016 a 2020.

Quando faleceu, John era vice-diretor da FFCLRP-USP, desde 2020, uma atividade que apreciava imensamente. John encarava com tranquilidade as tarefas que dependiam de interações humanas, mesmo que, às vezes, fossem um tanto delicadas e potencialmente belicosas. John aprendeu a ser um habilidoso e gentil mediador de conflitos, como ele gostava de ser reconhecido. Era também, desde 2023, o coordenador do Grupo de Trabalho da área Ambiental e Sustentabilidade do “Projeto do Campus Parque”, pelo qual nutria especial carinho e dedicação.

O enlace de John com o Estado de São Paulo e, particularmente, com Ribeirão Preto e região, também tinha suas atitudes na vida “externa” à universidade como testemunhas. John e Elaine se casaram em Ribeirão Preto, em 1999. Passavam boa parte das férias alternando entre passeios pelo litoral paulista e pelo cerrado, sempre à procura de se revigorarem em cachoeiras protegidas por matas preservadas e no mar da Costa Verde. O casal planejou e construiu cuidadosamente uma linda casa em Ribeirão Preto, da qual quase metade do terreno foi dedicada a uma pequena floresta nativa, onde, segundo suas próprias palavras, “as forças evolutivas orgânicas se expressam livremente, e as forças espirituais também”.

De fato, no período de cerca de um mês em que ficou hospitalizado, John expressou sua essência da forma mais genuína: se preocupava com as questões de gestão da Filô e do Departamento de Biologia, trabalhou com dedicação em manuscritos científicos, devorou literatura sobre história da ciência, conversou intensamente, e com bom humor, sobre sua vida pessoal e acadêmica, em uma espécie de revisão, se emocionou várias vezes e escutou os amigos com atenção. John contou que se sentia especialmente acolhido por estar internado em sua própria instituição, a Universidade de São Paulo. E confidenciou, com lágrimas nos olhos, que a mobilização da campanha de doação de sangue promovida pelos estudantes foi uma das maiores emoções de sua vida.

E, não podemos deixar de mencionar, John expressou todo o seu amor e gratidão à sua esposa Elaine, que o amava reciprocamente. John sabia que Elaine foi a responsável por permitir que a doçura e generosidade de seu coração aflorasse. Aliás, talvez essa fosse sua mais extraordinária característica: a contínua capacidade de aprender e de se renovar.

A viagem de John, agora, não foi mais para uma distante ilha da costa leste do Oceano Pacífico. Embora John tenha se distanciado, sem retorno, da nossa condição material humana, ele nunca esteve tão próximo. John lidou com sua condição com comovente serenidade, a qual o levava para um novo estágio de transformação da matéria, como ele estava plenamente consciente.

Apaixonado por naturalistas viajantes de espírito livre, como Alexander von Humboldt, e um implacável evolucionista, John compreendeu e aceitou sua passagem como parte de um processo, com a generosidade de tranquilizar, com palavras de amor, a sua incansável companheira Elaine e a todos seus amigos. Para quem fica, John deixa aberta uma imensa clareira de possibilidades não realizadas. Mas ele estava ciente de ter cumprido uma magnífica jornada, plena de amor e de realizações. John deixou sua esposa Elaine, seu filho Richard, sua mãe Patrícia Louise, os irmãos David, Elizabeth, Julian, e Madaleine, os sobrinhos Ayla e Kob Harrison, e uma legião de amigos, fãs, admiradores de seu trabalho e, sobretudo, de sua exitosa vida, que deve ser celebrada.

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