A Fuvest e a marginalidade das escritoras

Por Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora da USP; Aluísio Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação; e Gustavo Ferraz de Campos Monaco, diretor-executivo da Fuvest

 18/12/2023 - Publicado há 11 meses
Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

O pró-reitor de Graduação, Aluisio Cotrim Segurado – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Gustavo Monaco – Foto: Reprodução/FD-USP
Há 35 anos, a Fuvest elabora a relação das obras obrigatórias para orientar as provas do vestibular para ingresso na USP. A recente proposta de mudança nessa lista suscitou indagações a respeito dos critérios utilizados para a alteração das obras de literatura indicadas.

Ao longo desse período, a lista sofreu alterações. No conteúdo, a proposta de construir uma lista exclusivamente composta de escritoras foi entendida de maneira equivocada, pois se lhe atribuiu um caráter militante e de exclusão de grandes escritores brasileiros. Mas este não é o caso.

De um lado, a Fuvest tenta dialogar com as transformações do cânone literário e, de outro, chamar a atenção para a permanente marginalidade das escritoras no ensino médio, em razão de não fazerem parte do rol de exigências da Fuvest com a intensidade que a nova lista propõe.

Um segundo aspecto refere-se ao processo de elaboração das provas. As bancas da Fuvest são dos segredos mais bem guardados e, de tempos em tempos, seus participantes são substituídos e novos examinadores são integrados.

Além do mais, as questões que compõem as provas nem sempre decorrem das obras da lista de leituras obrigatórias. O compromisso fundamental da Fuvest, nesse sentido, é o de acompanhar o avanço do conhecimento e induzir a que o ensino médio possa absorver as pesquisas mais avançadas das diferentes especialidades. Nesses últimos anos, constata-se que as novas gerações não são afeitas à leitura integral das obras, preferindo a informação advinda de resumos que acabam por empobrecer a formação dos estudantes, eliminando o espaço de reflexão e imaginação que o acesso direto às obras proporciona.

Compor a lista de leitura obrigatória da Fuvest confere prestígio a autores, às casas editoriais e é componente da construção do cânone literário. A própria reação à lista recentemente divulgada é exemplo eloquente nesse sentido.

Surpreende, todavia, a percepção por nós considerada equivocada de que a ausência momentânea do rol de autores obrigatórios seja fonte de desprestígio. Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, José Saramago, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa e tantos outros são parte integrante da melhor literatura brasileira e portuguesa e, portanto, têm lugar assegurado na nossa tradição letrada. No entanto, a desconsideração das obras das escritoras suscita, ela sim, um espanto e apequena as autoras indicadas. É por essa razão que a referência às motivações não reveladas da mudança acaba por referendar essa ausência injustificável.

Quando insistimos na existência de um “novo cânone literário”, que se refere à evolução e expansão dos critérios usados para determinar quais obras literárias são consideradas essenciais ou exemplares, pretendemos incluir uma gama diversificada de vozes e perspectivas, incorporando autores de origens sociais, culturais, étnicas, de gênero e geográficas diversas, com a finalidade de trazer para o debate a riqueza da literatura contemporânea. Tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados que, certamente, não podem ser negligenciados na formação dos estudantes. A abertura para outras criações literárias, no entanto, enriquece, ainda mais, o aprendizado e a reflexão dos vestibulandos.

Reafirmamos que estar momentaneamente ausente da lista de leitura obrigatória não é fonte de desprestígio, sobretudo quando se trata de autores notáveis como são nossos clássicos. A inovação introduzida não exclui, antes pressupõe, o momento posterior de equilíbrio na construção da lista de leitura obrigatória. Em tal momento, nenhum critério de classificação poderá ser excludente. Afinal, a sociedade é, ela própria, diversificada e múltipla.

A lição de Nísia Floresta, em Opúsculo humanitário, já antecipava a questão vista como controvertida: “Por mais rigorosas que tenham sido as instituições dos povos, concernentes à exclusão absoluta da mulher de toda a sorte de governo público, quem há aí que ignore ter ela a maior influência nas ações dos homens, e por conseguinte nos destinos dos povos?”.

 

(Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 17/12/23)


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