Professor da USP comenta rebelião em Manaus

Enquanto o País permanecer indiferente à questão social envolvida no processo da criminalidade e no sistema penitenciário como um todo, a situação tende a permanecer exatamente a mesma

 06/01/2017 - Publicado há 7 anos

Acompanhe a entrevista da jornalista Miriam Ramos com o professor associado da Faculdade de Direito da USP Alamiro Velludo Salvador Netto:

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Depois das cenas de horror ocorridas durante a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, na manhã de segunda-feira (2/1), na qual 56 presos morreram de forma violenta –  a maior matança num presídio brasileiro desde 1992, quando 111 detentos morreram nas mãos dos policiais na Penitenciária do Carandiru – , o governo federal se apressou a anunciar um plano de segurança e urgência na construção de presídios. As medidas previstas no novo Plano Nacional de Segurança foram detalhadas pelo ministro da Justiça, Alexandre Moraes.

Complexo Penitenciário Anísio Jobim - Foto: Divulgação/Secretaria de Administração
Complexo Penitenciário Anísio Jobim – Foto: Divulgação/Secretaria de Administração

O ministro destacou que o plano vem sendo construído há cerca de seis meses e afirmou que as propostas estão concentradas em três pontos prioritários: combate aos homicídios, combate integrado ao tráfico de drogas e armas, com países vizinhos, e a racionalização e modernização dos presídios.

Em entrevista à jornalista Miriam Ramos, da Rádio USP, o professor associado Alamiro Velludo Salvador Netto (Departamento de Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia da Faculdade de Direito da USP) comentou que o combate aos homicídios é um “objetivo que toda sociedade tem de perseguir”. Ele observa que o número de mortes violentas no Brasil ainda é muito alto, “o que nos compara inclusive a alguns países que vivem em estado de guerra civil”. De fato, algumas capitais têm cifras astronômicas, quando se fala na taxa de homicídios por 100 mil habitantes.

“É uma questão que vai muito além de uma palavra forte. Para que se consiga de fato diminuir o número de homicídios no Brasil, é importante que se tenha uma concatenação de atividades, não basta só o policiamento e a compra de viaturas e de armamentos”, diz o professor. Para ele, a situação é bem mais complexa, uma vez que homicídios possuem explicações multifatoriais, que passam pela realidade social dos brasileiros e pelas relações familiares, em que se destaca a questão do feminicídio, muito grave no País. “O objetivo é nobre, mas passa por um cabedal de políticas públicas que vão muito além de um aspecto meramente policialesco ou de segurança.”

Em relação à outra meta prevista pelo plano do governo, ou seja, de combate integrado ao tráfico de drogas e armas, o professor Salvador Netto vê como essencial a questão das drogas, para ele um ponto fundamental. “A nossa política de drogas, na lógica do “proibicismo”, na lógica do cárcere, é absolutamente falida.”  De acordo com ele, o planeta inteiro – inclusive os Estados Unidos, que, por mais de 20 anos, capitanearam uma guerra contra o narcotráfico – tem mudado a perspectiva sobre o tema. Hoje, o foco passou a ser o investimento em políticas de descriminalização das drogas, como a  experiência portuguesa, de 2001 deixou claro , ou a uruguaia, na América do Sul.

Para o professor da Faculdade de Direito da USP, talvez seja a hora de o Brasil enfrentar esse problema de uma outra forma, que não passe pela intolerância, e sim pela compreensão de que a questão da droga deve ser encarada como estando ligada à área da saúde pública e não à criminal. Ele é enfático ao afirmar que não vê a mínima chance de sucesso em uma política relacionada às drogas pautada exclusivamente pela dimensão da segurança pública.

Na questão do combate ao crime organizado, o professor da USP vê como uma dificuldade adicional o fato de, no Brasil, existir certa dificuldade em unificar a inteligência policial. Como a segurança pública é, via de regra, de responsabilidade das unidades da federação, cada Estado tem o seu corpo policial e sua base de dados próprios, assim como também o seu setor de inteligência. Em consequência, as informações obtidas não ultrapassam as fronteiras dos próprios Estados. “Se conseguirmos otimizar, no sentido de aproximar essas informações, levando-as aos mais distantes rincões do País, isso será muito positivo, e um passo que o País deveria ter dado há algum tempo.”

O ministro da Justiça disse que o governo Temer liberou R$ 150 milhões anuais para os Estados contratarem bloqueadores de celulares; R$ 200 milhões para que os governos estaduais construam, imediatamente, mais de cinco presídios de segurança máxima; e outros R$ 80 milhões para a compra de equipamentos e armamentos de modernização dos presídios.

Ao observar que a questão da unidade prisional é algo muito mais complexo que um problema orçamentário ou de construção física de cárceres, Salvador Netto considera que o grande problema do Estado brasileiro  é “o abandono por completo da possibilidade mínima de controle do poder público sobre aquilo que ocorre nas penitenciárias. O Estado abandonou o sistema prisional sob os mais diversos aspectos”, diz ele, ao lembrar que o preso não tem condições mínimas de infraestrutura, educação,  saneamento básico, saúde ou de assistência social.

“Nós criamos um espaço no qual o  Estado deveria ser o grande responsável, mas onde não existe o Estado. E um exemplo disso é que as facções criminosas não surgiram de fora dos presídios, mas dentro deles, o que é sintomático.”  Uma consequência dessa não presença do Estado é o surgimento de organizações criminosas, que vão se tornando cada vez mais complexas a ponto de começarem a disputar o controle interno dos presídios. A disputa pelo controle é resolvida de uma perspectiva medieval, e foi exatamente isso o que aconteceu em Manaus, o que denota o caso de extremo abandono a que foi relegado o sistema penitenciário brasileiro.

“Nós não vamos conseguir resolver o problema prisional do País simplesmente aumentando o número de vagas nos presídios”, afirma o professor, “pois, quanto mais vagas forem construídas, mais presos vamos ter, e o déficit vai continuar da mesma forma”.  Para ele, o problema só terá solução quando houver a consciência de que o fenômeno da criminalidade decorre da estrutura social do País. “Se não tivermos uma visão da compreensão desse problema, que vai muito além do Direito Penal, da cadeia, da pena, dos presídios, nós vamos continuar nessa lógica cruel, que vai produzir cada vez mais cenas terríveis, como as que acabamos de ver há alguns dias, em Manaus, mas que já vimos no passado em Sergipe ou em Pedrinhas, no Maranhão. Vamos continuar convivendo com um sistema prisional que é extremamente cruel.”

 


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