Reaproximação entre Cuba e Brasil pode cimentar posição brasileira como liderança regional

A embaixada brasileira em Havana deve receber Christian Vargas, indicação já aceita por Cuba; o país insular sempre foi um símbolo anti-imperialista e contrário aos Estados Unidos

 27/03/2023 - Publicado há 1 ano
Por
O panorama das relações Brasil-Cuba foi muito marcado pelo período da Guerra Fria – Foto: Freepik
Logo da Rádio USP

 O diplomata Christian Vargas foi confirmado como o embaixador do Brasil em Havana, Cuba. Ele já recebeu o agreement, o que significa que Cuba aceitou a indicação. O indicado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já ocupou o cargo de chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Minas e Energia durante o governo Bolsonaro e esteve na viagem à Arábia Saudita com Bento Albuquerque, ex-ministro da pasta. Essa indicação e a aceitação não passam despercebidas, já que, desde 2016, as relações entre os dois países estão estremecidas. Durante o governo Bolsonaro, as relações também continuaram dessa forma, principalmente pelo afastamento ideológico entre os dois governos. 

Pedro Feliú Ribeiro: DCP USP

“O elemento central foi o impeachment da Dilma, que não foi reconhecido pelo governo cubano e por isso, em 2016, a indicação que o ex-presidente Michel Temer fez para a embaixada brasileira em Havana não foi aceita pelo governo cubano, paralisando, digamos assim, esse processo protocolar de indicação de embaixador”, explica Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. 

Mesmo com as relações diplomáticas estremecidas, as relações comerciais com a ilha aumentaram 60,3% em 2022, atingindo um superávit de US$ 287,2 milhões, segundo dados da ComexVis. “O ponto de vista das relações comerciais entre os dois países não é relevante. É muito mais relevante do ponto de vista político, do ponto de vista simbólico e do ponto de vista da integração latino-americana. Aí sim, é importante, e o Brasil é um país que mantém relações diplomáticas com Cuba desde a nossa República Velha”, lembra Wagner Iglecias, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. 

Wagner Iglecias – Foto: ALESP

Lula é um ávido admirador de Cuba e defende o modelo econômico do país socialista,  enquanto também prega a integração econômica na América Latina. Em sua viagem à Argentina no início do ano, pediu “carinho” com Cuba e criticou o embargo imposto pelos Estados Unidos ao país insular há mais de 60 anos. Em encontro com Biden no mês passado, Lula pediu que a relação do país americano com Cuba fosse revista. 

Algum avanço nas relações EUA-Cuba foi visto durante o governo de Barack Obama, porém, Trump decidiu, pouco antes de deixar o cargo da presidência, recolocar o país na lista dos “patrocinadores do terrorismo”. Ele segue até hoje nessa posição. 

Relações históricas e o simbolismo

“O panorama das relações Brasil-Cuba foi muito marcado pelo período da Guerra Fria, então, no golpe militar de 64, o presidente Castelo Branco rompe relações diplomáticas com Cuba, que são retomadas em 1986 com o presidente Sarney, já na redemocratização”, diz Ribeiro. 

Desde então, as relações com Cuba nunca foram realmente rompidas novamente. Nesse momento, porém, uma reaproximação entre os dois países significaria muito mais do que relações diplomáticas. Na avaliação do professor, “no caso da esquerda latino-americana, sem dúvida Cuba foi sempre um símbolo da maior importância em termos de luta anti-imperialista, uma bandeira que sempre foi muito comum aos partidos de esquerda na América Latina: de autonomia na política externa e principalmente do sentimento anti-americano”.

Ele ainda diz que essa aproximação pode consolidar a posição do Brasil como um líder regional, além de “servir como plataforma de barganhar melhores resultados com os Estados Unidos. O Lula sempre apostou, desde a sua época de sindicalista, nessa integração. Não sei se a integração [naquela época] dos países, mas pelo menos a integração das esquerdas e, quando ele chegou à Presidência, poderia apostar na integração dos países, dos Estados. Eu acho que há possibilidade de a gente avançar nesse sentido”, complementa Iglecias.

Oposição brasileira 

Nem tudo são flores. Por mais que uma aproximação entre o Brasil e o país socialista seja cara ao presidente Lula, ainda é vista por grande parte da população como inviável. Essa relação é um dos pontos de maior oposição entre os não adeptos ao regime cubano. “A direita brasileira sempre será contra as relações mais próximas com o regime socialista. Qualquer que seja ele e principalmente aqui, no caso da nossa região do mundo com o regime cubano, ela sempre terá contrariedade em relação a isso”, explica Iglecias.

Muito disso decorre de fatos ocorridos durante outros governos do PT, nos quais foram feitos investimentos, via BNDES, a Cuba. Um deles é a construção do Porto de Mariel, que recebeu um investimento de mais de U$638 milhões, pelo grupo Odebrecht, envolvido na Operação Lava Jato. Em 2018, foi decretado calote de Cuba e até hoje o país não pagou integralmente suas dívidas.

Rafael Antonio Duarte Villa- Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Não me surpreenderia que o Brasil retome, sob o governo Lula, algum tipo de projeto para financiar algum tipo de obra em Cuba. No entanto, não vai ser mais do mesmo modelo que foi naquele momento. A oposição que está presente no Congresso Nacional vai colocar condições que vão fazer com que qualquer tipo de investimento no exterior se dê em outras condições”, explica o professor da EACH.

A mesma preocupação é vista em relação ao programa Mais Médicos, que vai ser retomado e deve abrir editais já nos próximos meses. O programa contratou, no passado, diversos médicos cubanos e, indiretamente, financiou o governo cubano. Mais da metade dos salários desses médicos ia para o Estado. Tornou-se um dos assuntos mais comentados durante as eleições presidenciais. 

“Este programa tem alta aceitação entre os setores mais pobres e os setores de classe média baixa”, diz Rafael Antonio Duarte Villa, professor do Instituto de Relações Internacionais e do Departamento de Ciência Política da USP. Em sua avaliação, “o problema fundamental desse programa enquanto apoio social tem sido a posição dos grêmios médicos e das associações médicas brasileiras, que têm lido esse programa de maneira muito ideológica”.

A nova versão do programa já está em vigor. A promessa do presidente é dar prioridade à contratação de médicos brasileiros. “Nesse momento, o foco está em garantir a presença de médicos brasileiros no Mais Médicos, um incentivo aos profissionais do nosso país. Se não houver quantitativo, teremos a opção de médicos brasileiros formados no exterior. E, se ainda assim não tivermos os profissionais, optaremos por médicos estrangeiros”, disse Lula no lançamento do programa no último dia 20.


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar é uma parceria da Rádio USP com a Escola Politécnica e o Instituto de Estudos Avançados. No ar, pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h e às 16h45. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.