Pesquisadores identificam duas novas espécies de besouros neotênicos

Na neotenia, indivíduos adultos retêm características de fases imaturas. A descoberta das duas novas espécies de “Jurasaidae” trouxe mais dúvidas a respeito desses pequenos besouros, descritos pela primeira vez em 2020

 03/09/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 09/09/2021 as 17:27
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Pesquisadores apontam para a necessidade de se prestar atenção especial aos insetos ainda não identificados depositados em instituições, laboratórios e coleções locais –  Fotomontagem por Rebeca Alencar com imagens de Wikimedia Commons e MDPI

 

Pesquisadores do Museu de Zoologia (MZ) da USP, da Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais, e da Faculdade de Ciências da Universidade de Palacký, na República Checa, publicaram um artigo que relata a descoberta de duas novas espécies de Jurasaidae (pequenos besouros neotênicos). A neotenia é um fenômeno evolutivo, onde indivíduos adultos retêm características de fases imaturas.

A primeira espécie descoberta, batizada de Jurasai miraculum sp.nov., foi coletada em Milagres, município do Estado da Bahia. O local é conhecido por ser uma zona de transição entre a Mata Atlântica e a caatinga. O comprimento total do macho adulto, da cabeça ao ápice das asas, é de 3,3 milímetros.

 

Detalhes da morfologia do Jurasai miraculum sp. nov. – Foto: Reprodução/MDPI

 

Já a segunda, chamada de Jurasai vanini sp.nov., estava no Núcleo Santa Virgínia, localizado no Parque Estadual da Serra do Mar, no Estado de São Paulo. O comprimento total da cabeça ao ápice do abdômen é de 4 mm. Vanini é uma referência a Sérgio Vanin, entomólogo, professor e ex-diretor do Museu de Zoologia da USP, que morreu em 2020.

 

Detalhes da morfologia do Jurasai vanini sp. nov. – Foto: Reprodução/MDPI

 

“Os pontos principais deste trabalho são as perguntas que ele traz sobre a distribuição e a biogeografia de grupo descoberto tão recentemente. Acreditamos que há uma diversidade de exemplares escondidos em coleções Brasil afora, sabe?”, aponta ao Jornal da USP o zoólogo Gabriel Biffi, primeiro autor do artigo.

Ao final do trabalho, os três autores convidam a comunidade científica a não apenas realizar pesquisas de campo em parte oriental da América do Sul, mas também prestar atenção especial a insetos ainda não identificados depositados em instituições, laboratórios e coleções locais.

Gabriel Biffi explica que neotenia é um fenômeno evolutivo, onde indivíduos adultos retêm características de fases imaturas. “No caso do Jurasaidae essa neotenia é extrema, porque as fêmeas são praticamente idênticas às larvas”, diz o pesquisador. “Só conseguimos diferenciar os imaturos de adultos olhando no microscópio.”

Como descreveram os pesquisadores no paper, as principais características que diferenciam o Jurasai miraculum sp.nov e o Jurasai vanini sp.nov de outros membros da família de Coleópteras estão na cabeça dos insetos. “Os Jurasaidae possuem mandíbula bem definida; nessas duas espécies novas, as peças bucais formam como se fosse um canudinho, típico de quem é sugador de líquido”, relata Biffi. “Por esse motivo, acreditamos que elas se alimentem de hifas (estruturas que compõem as células de um fungo) ou de material em decomposição.”

Os besouros pertencem à ordem Coleóptera, um grupo de organismo composto de 400 mil espécies agrupadas em 211 famílias.

Novas espécies, muitas dúvidas

Os primeiros Jusaraidae foram descritos em 2020, e os exemplares foram capturados em áreas de proteção das Serras do Mar e da Mantiqueira. Por isso, acreditava-se que, pelo fato de as fêmeas serem larviformes e incapazes de voar (somente os machos são alados), os membros dessa espécie necessitavam viver em hábitats climaticamente estáveis, incluindo os trópicos úmidos.

A identificação de dois novos exemplares trouxe muitas dúvidas ao pouco que já se sabia sobre os besouros neotênicos. Por serem minúsculos, acreditava-se que outras espécies seriam encontradas bem próximas, pois a capacidade de dispersão é diminuída. “Seria inimaginável encontrar dois bichos distantes 1.500 quilômetros um do outro”, explica Biffi.

 

Distribuição do Jurasaidae. Área verde representa o domínio de Mata Atlântica e a área laranja, a região semiárida brasileira, incluindo a Caatinga – Foto: Reprodução/MDPI

 

“Vimos que, além de ter uma distribuição muito mais ampla do que imaginávamos, eles devem ser resistentes a regiões impactadas. É possível que ainda tenha muita espécie nova escondida por aí”, diz Biffi.

Segundo os autores, o achado de um Jurasaidae na área de transição entre a caatinga arbórea e a Mata Atlântica sugere que, embora esses besouros sejam mais comumente encontrados na floresta úmida, eles também são pré-adaptados para a vida em ambientes mais secos. A localidade onde a espécie J. miraculum sp.nov. foi encontrada contém uma camada espessa de serrapilheira (capa formada por restos de filhas, galhos, frutos e demais partes vegetais que fica acima do solo e geralmente é observada em florestas e bosques) e solo relativamente úmido, razão pela qual esses besouros podem sobreviver.

“Vimos que, além de ter uma distribuição muito mais ampla do que imaginávamos, eles devem ser resistentes a regiões impactadas. É possível que ainda tenha muita espécie nova escondida por aí”, diz Biffi.

Exemplares não identificados

A identificação e classificação realizadas por Biffi só foi possível devido à publicação um trabalho anterior na revista Scientific Reports em 2020. Nele, a especialista em estudos de imaturos e besouros Simone Policena Rosa descobriu três espécies de uma nova família, batizada de Jurasaidae: Jurasai itajubense, J. digitusdei e Tujamita plenalatum.

Como conta Biffi, o achado foi fruto de expedições realizadas entre 2016 e 2018 na Reserva Biológica Municipal da Serra de Toledos, na cidade de Itajubá, Minas Gerais, e no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Mais de 80 larvas foram coletadas durante esse período e cultivadas em laboratório, o que ajudou a associar corretamente as fases imaturas e adultas, tanto de fêmeas quanto de machos.

Os exemplares adultos capturados na Serra dos Órgãos chamaram a atenção da pesquisadora. Os machos eram neotênicos (corpo mole, com cutícula mais flexível e fina do que os besouros não neotênicos) e a neotenia na fêmeas era mais acentuada, o que a deixava com a aparência de larvas.

 

Parque Nacional da Serra dos Órgãos – Foto: ICMBio

 

Os autores do estudo realizaram análises morfológicas e filogenéticas e concluíram que as espécies pertenciam a uma linhagem completamente distintas de Elatoroidea. Por isso, elas foram agrupadas em uma nova família.

Após a publicação do artigo, Biffi recorreu a alguns exemplares depositados há mais de dez anos no Museu de Zoologia, ainda sem identificação. “No caso desses meus bichos, uma das espécies, a da caatinga, era muito diferente”, diz Biffi. “Entrei em contato com a Simone, com quem já tinha feitos outros trabalhos, e ela logo percebeu que se tratava de uma nova espécie. Decidimos publicar imediatamente.”

O outro inseto, segundo o zoólogo, era parecido com um já descrito pela Simone. “Seria legal porque era uma população de uma região diferente e ampliaríamos a distribuição dela.” A partir daí, as discussões se deram por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, por conta da pandemia, até chegarem a publicar o artigo final.

Mais informações: e-mail biffi@usp.br, com Gabriel Biffi


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