A razão e o teatro do absurdo

“O absurdo é antídoto para o absurdo contido nas fake news e também diagnóstico contemporâneo da desigualdade social”

 23/10/2020 - Publicado há 4 anos

Por Janice Theodoro da Silva

“O absurdo deixa o campo da existência e passa para o campo da linguagem. O absurdo passa a ser tratado como realidade. Realidade absurda e às vezes real. Real na desigualdade, na injustiça e na violência” – Foto: Reprodução
Muita gente se espanta com afirmações absurdas. Os exemplos são muitos: a Terra é plana, o Holocausto, na Segunda Guerra, não existiu, o desmatamento não interfere no clima, comunista bebe sangue de crianças e tantas outras inverdades publicadas nas redes sociais. Intelectuais, jornalistas e pessoas acostumadas a utilizar a razão para pensar repetem, sem cessar, o quanto são absurdas essas afirmações.

A Terra já foi fotografada do espaço e a sua forma é redonda. Com relação ao Holocausto, não faltam depoimentos, fotos, vestígios comprovando a barbárie. Quanto ao fogo na mata, a destruição da fauna e da flora é fato comprovado, assim como o calor vivenciado por todos nós, brasileiros.

Dentre aqueles indivíduos especializados em declarações impactantes, Donald Trump é símbolo em destaque. Trata-se de personagem com papel importante no equilíbrio internacional. Seu porte espetaculoso, seu topete rígido e seu terno bem-arranjado servem à sua vontade de poder. A cenografia da Casa Branca compõe a cena de vocação imperial. O uso da linguagem em seus discursos é impactante, teatral. Ele não é o único ator na cena política atual disposto a construir o culto à personalidade. Existem vários replicantes entre os chefes de Estado, como ocorre no Brasil, e milhões de seguidores, cativados pela cenografia majestosa e por um lento e quase invisível crescimento da desigualdade.

Autor de inúmeras fake news, Trump é ator no teatro do absurdo, personagem símbolo de uma peça escrita, a partir dos anos 70, por uma nação chamada Estados Unidos.

Qual o nome da peça? Qual é a sua sinopse?

Sinopse: desigualdade.

Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a desigualdade, de acordo com o coeficiente de Gini (instrumento que avalia a distribuição de riqueza), é igualmente absurda. Observem o gráfico abaixo.

 

 

O espanto pode ser gerado pela leitura da tabela ou pela figura de Trump. Ele foi eleito pelo voto à maneira americana, respeitando a liberdade de opinião. O surpreendente nessa história é o número de pessoas que apoiaram as suas posições, apesar do empobrecimento de largos setores das classes médias.

Segundo o economista Peter Temin (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, MIT), a classe média norte-americana, nestes últimos 50 anos, “passou a representar de 62% da renda agregada dos Estados Unidos para apenas 43%. Os mais ricos passaram a representar de 29% para 49%” (Gerardo Lissard, BBC News, 16 de março de 2018).

 

 

De 1989 a 2018, o 1% mais rico aumentou seu patrimônio líquido combinado em US$ 21 trilhões. Os 50% mais pobres viram seu patrimônio líquido diminuir em US$ 900 bilhões no mesmo período. (2018 USD, <br /><a href=’https://pt.qaz.wiki/wiki/Wealth_inequality_in_the_United_States’>Desigualdade de riqueza nos Estados Unidos</a><br />)

A indignação e o espanto estão estampados na figura de alguns personagens com vocação teatral e narrativa marcada pelo impacto do absurdo. A raiz, nem sempre visível, é fruto de um processo de empobrecimento acentuado a partir dos anos 1970. A pauperização é atribuída à falta de garra das gerações mais jovens, à ausência de espírito empreendedor e à incapacidade de poupar. As políticas de Estado, responsáveis pela maior concentração de renda, são embaçadas por palavras, argumentos repetidos à exaustão, incapazes de inverter a curva da desigualdade. A ideia do empreendedorismo é vendida sistematicamente como possibilidade de ascensão social e os cortes na previdência pública, como possibilidade de ampliação dos investimentos. O pensamento científico é negado, a destruição do meio ambiente, relativizada, assim como as desigualdades na saúde e o risco de vida com a contaminação por covid, entre outras desigualdades.

A indignação está estampada na figura de personagens com vocação teatral e narrativa marcada pelo absurdo

“O lugar do Outro, do interlocutor silenciado, foi ocupado por enredos absurdos, ações repetitivas e sem significado ou justificativa lógica” – Foto: Paulo Soucheff – Flickr

Diante do absurdo, o que se pode fazer para ir além da indignação?

Nós, pesquisadores, jornalistas, professores e tantas outras pessoas acostumadas ao uso da razão, devemos gastar energia intelectual para compreender a cegueira. É imenso o contingente de pessoas cuja opção foi não ver, não sentir e não ouvir. As palavras perderam sentido. Esquerda e direita são exemplos. Não explicam políticas de Estado, não qualificam projetos institucionais ou, mesmo, pessoais. Aconselho os antigos a usarem as velhas palavras com cuidado. Pode complicar e não explicar.

Frente a esse desafio, uma hipótese. Talvez ela possa despertar reflexões sugestivas. Evitemos a trilha de direita e de esquerda. Vamos pensar o absurdo.

O caminho é longo. Mas, procurando, é possível encontrar, quem sabe, a saída.

Hipótese para responder ao desafio.

Por que os negacionistas escolhem, para se fazer ver na cena política, afirmar o contrário dos fatos comprovados ou negar conceitos já estabelecidos e de consenso, sem qualquer preocupação em justificar ou comprovar suas afirmativas?

Por abandono da razão ou por gosto pelo absurdo?

A razão, presente no pensamento clássico, defende a ideia de diálogo, da busca de justiça e da justa medida, gerida por homens de ciência. O objetivo é a construção e a manutenção de uma sociedade equilibrada, prudente, cooperativa. O logos, ou seja, a razão, para florescer depende do diálogo entre um Eu e um Outro. Ao comparar diferentes racionalidades, ao observar naturezas distintas e formas de viver, é possível rever, incessantemente, o lugar ocupado por cada um de nós no mundo.

Sociedades de tradição patriarcal, hierarquizadas, com dificuldades de mobilidade social e manipuladas pelas novas tecnologias dificultaram a construção e uso do diálogo como forma de comunicação social e revisão do lugar social. As redes, em sua dimensão digital, ampliaram o espaço e percepção do Eu e diminuíram o espaço e percepção do Outro. Os extremos são nomeados comumente como Eu e eles. “eles“ (em minúscula) representam o não Eu, aquele a quem não se atribui existência, coisa que deve desaparecer ou ser desaparecida, apagada. O Outro não tem direito à palavra, porque a palavra só faz sentido entre iguais.

O lugar do Outro, do interlocutor silenciado, foi ocupado por enredos absurdos, ações repetitivas e sem significado ou justificativa lógica. Alguns exemplos esclarecem: Hitler é de esquerda (apesar das evidências históricas), o Holocausto dos judeus e de outras minorias não existiu (apesar das provas), as ONGs estão incendiando as florestas (apesar de que os dados mostrem os autores bem mais prováveis dos incêndios), covid é “gripezinha” (apesar dos milhares de mortos com covas fotografadas), a cloroquina cura (embora a ciência não comprove a afirmativa), e assim tantas outras afirmações.

Aviso: quem disser que o rei está nu deve ser deletado.

A qualificação absurda de fatos é repetida infinitas vezes com objetivo apenas de torná-los verdadeiros pela repetição em excesso. Frases de efeito também são muito utilizadas para desqualificar o interlocutor, do tipo “A montanha pariu um rato” ou “Faço isto em nome da nação”, simbolizando uma totalidade e unidade imaginária.

Qual a razão de se optar pelo absurdo, de sentir prazer em proferir afirmações desvairadas, de propor a criação de um inimigo fictício para justificar o uso da força e da violência?

Qual a raiz da “nova barbárie”, adequada para consumo nas mídias digitais?

Observem um detalhe merecedor de destaque. Teria o absurdo uma raiz? O que ele encobre e como encobre?

Da população mundial, 1% detém metade de toda a riqueza do planeta e 71% da população mundial é muito pobre, não raro passa fome e no horizonte vê, apenas, a desesperança. Os Estados Unidos, embora sejam um país muito rico, carregam índices altos e crescentes de desigualdade. O resultado é inevitável: desencantamento diante de um mundo marcado por absurdos reais, possíveis de serem comprovados estatisticamente.

Uma confederação internacional voltada para estudos e luta contra a pobreza no mundo (Oxfam) mostra em seus levantamentos que os seis maiores bilionários brasileiros concentram, juntos, a riqueza da metade da população brasileira. Isso significa que, em um país com aproximadamente 210 milhões de habitantes, seis deles possuem riqueza equivalente à de outros 105 milhões.

É razoável ou é absurdo?

O Brasil é o país que mais concentra riqueza entre o 1% mais rico na América Latina, tendo seu coeficiente de Gini mais baixo entre os países latino-americanos, ficando atrás apenas de Colômbia e Honduras.

A ciência tem avançado muito ao longo da história, desenvolvendo técnicas e tecnologia para responder aos desafios da fome, da sede e do frio. A ciência tem produzido conhecimentos em quantidade para elaborar instrumentos capazes de fazer diagnósticos e propor soluções capazes de modificar uma parte dessa trágica realidade. Os avanços da ciência e da tecnologia servem, cada vez mais, para parcelas pequenas da população. Observem, por exemplo, os tratamentos médicos e o preço de algumas medicações.

Em certa medida as palavras, a razão e o pensamento científico, utilizados constantemente na prática política, não geram resultados capazes de responder às necessidades de milhões ou bilhões de necessitados. Talvez seja esse o lugar da descrença na política, na democracia e no revigoramento de qualquer tipo de religiosidade entre a população.

A desigualdade, acentuada por uma infinidade de situações visíveis e invisíveis, separa, hierarquiza, silencia e marginaliza parte das pessoas

Qual o lugar da esperança? O caminho é a busca da razão ou da desrazão, do absurdo?

“O herói do absurdo, hoje, professa a desrazão e faz pouco da razão” – Foto: Marcio Meirelles – Flickr

Os dados sobre as dificuldades de uma comunidade são levantados, o diagnóstico é feito e a solução é apresentada de forma racional por alguns membros da elite política, mas a população continua sem condições mínimas de higiene e de educação, com atendimento precário na área de saúde. Apesar de os problemas serem discutidos diariamente pelos meios de comunicação, a mudança, quando ocorre, é lenta demais.

O Estado, por meio de seus representantes eleitos, não responde aos desafios (distribuição de renda e bem-estar social), embora os políticos repitam, como mantra, os problemas não solucionados. A justificativa frequente é a falta de dinheiro, a corrupção e sistema eleitoral. Os argumentos apresentados não silenciam, não apagam a miséria e o desejo de consumo. A desigualdade, acentuada pela cor da pele, pelo poder e status expresso no consumo, pelo tratamento médico diferenciado, pela hierarquização dos sotaques regionais e gênero, pelo uso da língua e por uma infinidade de situações visíveis e invisíveis, separa, hierarquiza, silencia e marginaliza, de forma doída, parte das pessoas.

A sociedade contemporânea não é apenas desigual e corrupta. Ela vai além ao expor nas vitrines suas plumas e paetês, como se quisesse fazer doer a imensa desigualdade de uma democracia em crise.

“O absurdo, presente na dramaturgia, serve como vacina e material para reflexão” – Foto: Marcio Meirelles – Flickr

A palavra “absurdo” me conduziu em uma viagem para o Teatro do Absurdo, de Martin Esslin (1918-2002), um conjunto de peças surgido no pós-guerra, críticas à razão técnica e científica, instrumentos necessários em época de guerra. As peças encenadas tinham em comum uma reflexão sobre um mundo onde não há diálogo (pós-guerra), onde a linguagem perde sentido e o desligamento da realidade caracteriza a vida em sociedade. O existencialismo no pós-guerra colocou em cena a descrença diante do mundo e dos homens.

O teatro do absurdo utiliza diálogos sem sentido, gestos repetitivos e cenografia capaz de expor situações absurdas, como na peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco (1909-1994). Os homens se transformam em paquidermes, expressando o embrutecimento humano, a perda da sensibilidade e uma racionalidade em crise. A linguagem, utilizada por Ionesco, Samuel Beckett (1906-1989) e Arthur Adamov (1908-1970), entre outros ligados a essa corrente estética, é carregada de desolação, descrença na humanidade e profunda solidão. São sentimentos frutos da violência experimentada na guerra, expressas nas artes como crise existencial, problemática que ressurge na atualidade com outra conotação. O absurdo deixa o campo da existência e passa para o campo da linguagem. O absurdo passa a ser tratado como realidade. Realidade absurda e às vezes real. Real na desigualdade, na injustiça e na violência.

Os negacionistas são atores incapazes de abandonar os papéis, vivem deles, das máscaras. Atrás das personagens inexiste o ator, a pessoa, o sentimento.

Cena de O Rinoceronte, peça de Eugène Ionesco – Foto: Sol – divulgação.

O herói do absurdo, hoje, professa a desrazão e faz pouco da razão. Ele não experimentou uma crise existencial nem jamais refletiu sobre a condição humana. Nas redes sociais, o ídolo destemido e seus replicantes há muito perderam identidade política e ganharam teatralidade. São construtores solidários no ódio, como os supremacistas brancos. O enredo teatral envolve sangue de crianças transformado em alimento para o papa ou para os comunistas. As palavras são usadas como fábricas de clichês ou pelo avesso do seu significado de origem. As palavras não se referem mais ao visto, sentido, ouvido e enunciado. Faz parte do absurdo contemporâneo destruir o sentido das coisas especialmente no que diz respeito à generosidade, cooperação e negociação entre partes discordantes. Sentimentos considerados antigos, femininos, ultrapassados.

Os negacionistas são atores incapazes de abandonar os papéis, vivem deles, das máscaras. Atrás das personagens inexiste o ator, a pessoa, o sentimento. Figuras no palco apenas representam, investidos do poder das mídias, dispostos a chocar as plateias, alguns com a lembrança, tênue, do que eram as coisas e as gentes, antes de o ódio prevalecer entre os homens e se organizar em gabinetes.

Em cada momento da história a literatura, a dramaturgia e as artes proporcionam reflexões. Teatro do absurdo é a sugestão para este momento. O absurdo, presente na dramaturgia, serve como vacina e material para reflexão. É ao mesmo tempo antídoto para o absurdo contido nas fake news e também demonstração realista, visível nos gráficos e diagnóstico contemporâneo sobre a desigualdade social.

Sugestões de leitura: O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, para a compreensão mais apurada dos paquidermes, a A Cantora Careca, para enfrentar surtos de nacionalismo, e Esperando Godot, de Samuel Beckett, com a esperança trazida pelas mãos de um Godot.

Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP


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