“Zoom meeting” e tempo escolar

Por Diana Vidal, professora titular de História da Educação da FE-USP e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP)

 07/05/2020 - Publicado há 4 anos
Diana Vidal – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Com o isolamento social e o fechamento das escolas durante a pandemia da covid-19, as ferramentas para o ensino a distância, como o zoom meeting, têm sido mobilizadas com grande impacto sobre o cotidiano das famílias, de docentes e de alunos e alunas. A interferência sobre o tempo escolar foi uma das consequências imediatas da pandemia. Para refletir sobre as relações entre tempo escolar e tempo social, proponho voltar os olhos para as reformas educacionais de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, realizadas no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, entre 1927 e 1935.

Partindo do diagnóstico de que a capital da República não atendia a toda a população em idade escolar, em 1928, Fernando de Azevedo implementou, dentre outras iniciativas com o objetivo de promover a escolarização no município, a alteração quantitativa e qualitativa dos tempos da escola primária carioca.

No que concerne à mudança quantitativa, a intervenção foi de duas ordens: redução do curso primário de sete para cinco anos de duração, sendo o quinto ano dedicado ao ensino pré-vocacional; e homogeneização da jornada escolar em quatro horas e 30 minutos. Para tanto, tornaram-se necessárias a diminuição do dia de aula nas escolas de turno único de cinco para quatro horas e 30 minutos, com antecipação do horário de saída e redução no tempo do recreio; e a  prorrogação de quatro horas e 20 minutos para quatro horas e 30 minutos na jornada das escolas de dois turnos, com antecipação no horário de entrada dos turnos da manhã e da tarde.

As alterações qualitativas visaram a assegurar o fluxo dos trabalhos escolares, reforçando dispositivos de controle da frequência escolar e, portanto, da assiduidade e pontualidade de alunos e professores. Nesse tocante, não apenas foram instituídas multas pecuniárias aos pais dos alunos ausentes, como foram criadas punições aos retardatários: corte do ponto aos docentes e impedimento de ingresso no espaço escolar aos discentes. Por outro lado, o reticulado do quadro diário de disciplinas foi também alterado. Em lugar da fragmentação das atividades em períodos de 5, 10, 30 ou 60 minutos, foi instaurada a noção de tempo de interesse para a aprendizagem dos saberes escolares.

As mudanças tiveram impacto não apenas no âmbito das práticas escolares. Elas impactaram também as práticas sociais. Um artigo publicado pelo jornal Correio da Manhã, em 11 de março de 1928, esclarece o problema:

“Pelo novo regulamento das escolas primárias, o horário para as aulas do primeiro turno é de 7,30 às 12 horas. Quer dizer: quando a criança sai de casa para ir ter a sua aula, o comércio a varejo de gêneros alimentícios está começando a abrir as portas. Assim, se essa criança tem de levar a sua merenda, o que é natural e habitual, não a logrará em casa, salvo se os pais se dispuserem a fornecer-lhe alimento guardado de véspera, numa cidade em que o verão é asfixiante e nem todos podem ter geladeiras no domicílio.

Mas não é só a criança sacrificada. A professora ainda fica em situação mais difícil. Se ela mora em Copacabana, na Gávea e em Botafogo, devendo lecionar na Tijuca, no Engenho Novo ou em Cascadura, ou se ela reside em qualquer dessas localidades suburbanas e ensina no centro da urbe, terá de sair de casa no mínimo às 6 da manhã, em jejum. O ponto é, improrrogavelmente, encerrado às 7,20.

A diretoria de instrução está sendo superintendida por dois técnicos. Mais de uma vez em livros e artigos publicados, em conferências pronunciadas, os drs. Fernando de Azevedo e Vicente Licínio Cardoso têm afirmado e reafirmado dos propósitos de nobre alcance em favor da educação popular. Não nos parece possível, por isso mesmo, nem admissível, que ambos estejam indiferentes a essa questão de horários, que tão sérios transtornos está causando”.

O jornalista realçava a articulação entre tempo escolar e tempo social, explicitando que alterações no horário de entrada de alunos e professores na escola demandavam ajustes no horário de funcionamento do comércio e dos transportes, na organização do tempo e da economia familiares e na distribuição populacional. A interferência na vida da cidade era o principal argumento mobilizado para sensibilizar as autoridades educacionais a reverem o panorama de insatisfação criado, na certeza de que a escola era impotente para ajustar os fazeres sociais às suas necessidades.

A consequência tornava-se previsível: a frequência escolar seria abalada. Opunha-se, assim, à aposta de Azevedo de que os tempos escolares poderiam ditar os sociais, e denunciava a ainda fraca inserção da escola na sociedade carioca. A questão, que em momentos assumia a forma de uma disputa entre o governo da casa e o governo da escola, evidenciava outras dimensões das práticas sociais, como aparece em matéria, veiculada agora no Jornal do Commercio, em 24 de maio de 1928:

“Infelizmente, alguns pais de alunos não têm querido auxiliar as autoridades escolares para o cumprimento desse horário, havendo em todos os distritos, notadamente nos da zona urbana, a maior irregularidade à hora de entrada dos alunos, sob a alegação de que a entrada do 1o turno às 7,30 não dá tempo para que as crianças compareçam à escola com a primeira refeição e possam igualmente desobrigar-se de serviços domésticos”.

Realizar serviços domésticos era, e é até hoje, uma tarefa comum às crianças de famílias mais pobres, cujo trabalho, no lar ou na rua, se afigurava (se afigura) como uma das formas de sobrevivência familiar. Se a essa prática for associada a menção à falta de geladeiras nas casas, o que, por certo, era uma realidade no Rio de Janeiro dos anos 1920, pode-se estimar que a alteração do horário da escola entrava em litígio com a rotina das camadas populares – justamente a parcela da sociedade que a reforma pretendia integrar aos bancos escolares.

Não se deve pretender ver, aqui, uma recusa da escola por parte da população menos favorecida, reeditando análises historiográficas que afirmavam o desinteresse popular pela escolarização, pioneiramente questionadas por Zeila Demartini, nos anos 1980, mas introduzir a perspectiva de que o conflito sinalizava representações sociais de escola e escolarização em luta.

A prioridade à instituição escolar, desejada pelas autoridades educacionais, contrastava com a posição complementar a ela conferida pelas demais instituições sociais, neste caso a família. As penalidades previstas, como multa pecuniária, não eram suficientes para assegurar nem a regularidade da presença nem a pontualidade dos alunos e, seguramente, não estimulavam a permanência nos bancos escolares durante todo o curso primário. Para os pais, as crianças deveriam ir à escola, mas no horário que lhes fosse mais conveniente e de acordo com os projetos familiares concebidos para cada membro.

Aqui, a categoria família ganhava outra substância. Famílias abastadas e famílias desfavorecidas concebiam diversamente o lugar social da escola. Outro inquérito, realizado já durante a reforma educacional feita por Anísio Teixeira na capital do Brasil, em 1932, oferece mais subsídios à percepção dessa diferença. Os resultados apontaram que a evasão escolar se estendia a todas as classes sociais utilizadas como parâmetro (indigentes, pobres, remediados e abastados) e que a frequência média nas escolas primárias do Distrito Federal se situava em torno de três anos.

Menos de 1/3 dos alunos matriculava-se no terceiro ano. Os quarto e quinto anos representavam apenas 10% da matrícula total. O diagnóstico sinalizava que, findo o terceiro ano escolar, as crianças pobres entravam no mercado de trabalho e as abastadas procuravam preparar-se para ingresso no secundário. Incitou a administração Anísio Teixeira a dividir o ensino em dois ciclos: primário (três anos iniciais, com o objetivo de ensinar a ler, escrever e contar) e intermediário (dois anos seguintes, para enriquecimento da bagagem cultural do aluno), de forma a atender às demandas de aprendizagem dos saberes elementares das classes populares e de aperfeiçoamento da cultura geral das classes médias e altas.

Os diferentes significados sociais atribuídos à escola e à escolarização por famílias abastadas e desfavorecidas e por autoridades escolares indicam as disputas em torno da representação hegemônica de escola, oferecendo pistas à percepção da realidade social como contraditoriamente construída pelos grupos. Assegurar a frequência escolar obrigatória por parte de todas as camadas sociais impunha homogeneizar as representações em luta e constituir a noção de escola proposta pela administração pública como hegemônica.

O intento não foi obtido pela reforma Azevedo, nem pela reforma Anísio Teixeira. No entanto, não é possível afirmar que nas décadas posteriores não se foi firmando a importância social da frequência regular e obrigatória à escola por todas as crianças cariocas (e brasileiras) e do caráter único dessa educação pública.

Mas, para que isso se efetivasse, negociações precisaram ser feitas entre os grupos, e os contornos da escola paulatinamente foram sendo redesenhados, acomodando os interesses díspares, ainda que o olhar retrospectivo da historiografia não lhes tenha dado relevo.

Simultaneamente, as relações entre a escola e a sociedade se transformaram, tanto pela impregnação dos fazeres sociais à escola, quanto pela disseminação de dispositivos escolares no seio da sociedade – faces complementares da cultura escolar. As constantes mudanças dos conteúdos curriculares e as incessantes cobranças sociais sobre a ação da escola trazem a medida dessas lutas. O exemplo das propostas de escolarização doméstica, conhecida também como home schooling, por parte de uma parcela da população, ou a defesa de uma escola sem partido nos dias atuais evidenciam que o conflito entre o governo da casa e o governo da escola permanece mesmo após mais de um século de obrigatoriedade escolar.

Com certeza, os efeitos da pandemia da covid-19 nas relações estabelecidas entre família e escola, entre professores e alunos, e os impactos das alterações no tempo dedicado aos estudos e às tarefas escolares reverberarão no cotidiano das aulas e no comportamento dos sujeitos escolares quando o isolamento social for suspenso e a frequência ao espaço escolar novamente requisitada.

O acesso diferenciado de grupos sociais às ferramentas on-line e à internet, o descompasso entre as aprendizagens no período de isolamento decorrente de várias razões, as necessidades de adequar os horários de entrada e saída das jornadas diárias em função de maior isolamento no transporte público, as atividades de reforço escolar em período escolar e extraescolar, a alteração das datas das férias escolares e do ano letivo: todas essas questões, associadas à maior familiaridade com estratégias de educação a distância, por professores, alunos e pais, e as táticas criadas no seio das famílias para favorecer situações de ensino serão base de argumentos mobilizados nas disputas em torno da escola, seus fazeres e sua relação com a sociedade, por parte dos diferentes grupos sociais, após o fim da pandemia, demonstrando a relação sempre tensa e variada entre tempo social e tempo escolar, e urgindo que tenhamos cuidado em assegurar que novas configurações não impliquem mais exclusão social.

 

(Texto extraído de um dos podcasts publicados no IEB às 14h, disponível no site www.ieb.usp.br, que traz todos os dias, à exceção dos feriados e fins de semana, uma nova emissão. Associado ao Ancor, e com um canal específico no Spotify, o programa registra ouvintes, além do Brasil, nos EUA, Alemanha, França, Portugal e Inglaterra.)


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