Quem é Yoko Ono?

Por Alecsandra Matias de Oliveira, doutora em Artes Visuais pela ECA-USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)

 07/02/2020 - Publicado há 4 anos
Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal

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Caso a lembrança mais viva seja a da sua relação com John Lennon, tem-se aqui um sério problema de parcialidade – algo cognoscível sob uma perspectiva dominada pela imagem do “artista homem e branco”. Sob essa feição, ela é uma das celebridades mais famosas do final do século XX e, simultaneamente, a artista mais desconhecida do grande público. Arredar sua produção da sombra do Beatle é, no mínimo, ato de reexame; é jogar luzes sobre uma narrativa excludente que ainda invisibiliza as mulheres e as coloca a reboque de seus pais, irmãos ou companheiros.

Ao evidenciar o percurso estético da artista Yoko Ono, retoma-se os agitados anos 1960, nos quais o movimento feminista discute o comportamento sexual, a distribuição dos papéis sociais e a divisão de tarefas no mundo do trabalho. Todas as ações e discursos estão envoltos por um forte questionamento sobre os valores patriarcais – o objetivo, à época, é a quebra das normativas vigentes desde tempos imemoriais. Adjacentes aos embates do feminismo, tem-se as passeatas pelos direitos civis, nos EUA, as inquietações de maio de 68 e os primeiros raios do pós-estruturalismo, ou seja, por todas as direções os “modelos tradicionais” estão sob ataque.

Integram esse contexto de incorformismo e denúcia as primeiras performances de caráter e influência feminista: Cut piece, de Yoko Ono, e Eye body, de Carole Schneemann, além do Feminist Art Program, criado em Fresno, no California Institute of Art, por Judy Chicago e Miriam Schapiro. No caso de Cut piece, em 20 de julho de 1964, na sala de concertos Yamaichi, em Quioto, a jovem artista senta no palco e convida o público a se aproximar e cortar suas roupas. Assim, a performer desafia a neutralidade da relação entre espectador e objeto de arte, apresentando uma situação em que o espectador está envolvido no ato potencialmente agressivo de desnudar o corpo feminino, que serve historicamente como um sujeito “neutro” e anônimo para a arte. De modo recíproco, os espectadores e sujeitos se tornam objetos e demonstram como a contemplação sem responsabilidade tem o potencial de prejudicar ou mesmo destruir o objeto da percepção. Ela repete essa performance em 1965, dessa vez, no Carnegie Recital Hall, em Nova York.

Cerca de uma década antes dessa performance politizada, Yoko Ono, com formação musical, especialmente piano clássico e canto, desloca-se frequentemente entre o Japão e os Estados Unidos e, em 1952, muda-se definitivamente para Nova York. A partir de então, estuda na Faculdade de Música Sarah Lawrence, onde conhece diversos músicos de vanguarda que, posteriormente, inspiram o surgimento do grupo Fluxus. Em Manhattan, divide com outros artistas um loft que se torna laboratório para as performances da artista e as experiências sonoras de John Cage – precursor da música aleatória e eletroacústica.

Yoko Ono na rádio russa comercial Eco de Moscou em 2007 – Aleksandr Plyushchev / Flickr via Wikimedia Commons / CC BY 2.0

Quando reencontramos Yoko Ono, entre o final dos anos de 1950 e meados de 1960, ela está mergulhada em obras conceituais que oscilam entre a introspecção poética e a sátira provocadora. Em Lightining piece (1955), ela convida os espectadores a observarem a consumação de um palito de fósforo. Essa e outras experiências levam a artista à ideia de integrar a arte à vida com a produção de obras que incitam o observador a uma relação estética com acontecimentos triviais, banalizados pela rotina – uma atitude de oposição àquilo que o grupo Fluxus chama de “arte europeizada”. Já Painting to see the skies (1961) é uma folha com instruções em japonês de como transformar uma tela convencional em uma espécie de óculos de observação do céu. Por volta de 1965, ela se apresenta no Carnegie Recital Hall, utilizando microfones para registrar o ruído de descargas de vasos sanitários.

Nas festas de final do ano de 1969 – em março, Lennon se separa de sua primeira esposa, casa-se com Yoko – o casal instala imensos outdoors em 12 grandes cidades do mundo com os dizeres “The war is over, if you want it. Happy Christmas, John and Yoko”. Em meio às manchetes diárias sobre a guerra do Vietnã, o ato deles é visto como perigoso pelo Federal Bureau of Investigation (FBI). A partir desse instante, o “casal subversivo” passa a ser vigiado a distância. Ademais, a performance anterior, Bed-in for peace, ocorrida em Amsterdã e, na sequência, em Montreal, causara escândalo: de pijamas na cama durante uma semana, o casal em “lua de mel” monopoliza a atenção da mídia mundial – para muitos, o ato resume-se a um Beatle de pijama causando frenesi. Porém, na manifestação de Yoko e John pela paz, não faltam repostas irônicas aos jornalistas ávidos por devassar a vida sexual das celebridades ali presentes.

Yoko Ono Lighting Piece (Peça de acender), 1955, realizada por Yoko Ono em 24 de maio de 1962 – Foto: Yoshioka Yasuhiro ©Sogetsu-Kai Foundation / Cortesia de Yoko Ono) via exposição Instituto Tomie Ohtake

As experiências de Ono nos anos 1960 reverberam na década posterior e John Lennon se recolhe à vida doméstica. Aqui o sonho de rever os Beatles novamente juntos se dissipa pouco a pouco – e, em muitas versões Yoko Ono é vista como a vilã. Sua relação com a celebridade mundial tinge com cores fortes sua diferença na sociedade norte-americana: mulher, asiática, performer e dona de um discurso feminista. Nesse sentido, sua produção dá margem ao florescimento do trabalho performativo feminista, especialmente preocupado com as relações que giram entre o público e privado.

Trinta anos depois e uma década após o assassinato de John Lennon, Yoko Ono lança Onobox, caixa de seis discos, reunindo sua obra até então. Animada com a receptividade calorosa, a artista, em parceria com a banda IMA, do filho Sean Lennon (1975), grava o disco Rising que rende uma turnê pela América do Norte e pela Europa, além de um CD de remixagem com Tricky, Thurston Moore e Perry Farrel, entre outros artistas. Em 2001, realiza a exposição retrospectiva de 40 anos Yes Yoko Ono. No mesmo ano, lança o disco Blueprint for a sunrise, com material inédito. Suas obras musicais e visuais são marcadas pela provocação, introspecção e pacifismo.

Agora, que se sabe quem é Yoko Ono, vem à tona a seguinte indagação: e, no Brasil, temos sua presença? A resposta é sim! Duas de suas obras integram, desde 2008, o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, inclusive o termo de doação foi assinado pela própria artista no auditório do museu, naquele momento, juntamente com uma palestra-performance.

Ex it, 1997Foto: Romulo Fialdini, enviada pela articulista

Sobre as obras, a primeira delas é Ex it (Os portões do inferno são apenas um jogo de luz), 1997/2007, é composta, originalmente, de 60 caixões de três tamanhos – seis pequenos, 24 médios e 30 maiores. Plantas naturais (fícus) são expostas dentro de cada caixão, ficando visíveis somente suas copas. Confeccionadas com madeira branca não aparelhada, as peças de aparência rústica, aliadas ao fícus, situam a efemeridade da vida e seu movimento de eterno retorno.

Raios da manhã, 1996 – Foto: enviada pela articulista

A segunda é Raios da manhã (com leito de rio) para São Paulo, 1996/2007. Atualmente exposta no térreo do MAC-USP, é uma instalação formada por 12 placas de aço, pintadas de branco, dispostas no chão, e cordas que descem do teto, iconizando os raios da manhã, sobre o leito de um rio seco repleto de seixos – algo que, realmente, remete à paz das primeiras horas do dia.

Todo esse legado legitima a relevância de Yoko Ono e mostra sua trajetória repleta de significados na história da arte atual para além da imagem de Lennon.

 

 


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