67/68: Tropicalismo, participação e transgressão

Celso Favaretto é professor livre-docente sênior da Faculdade de Educação (FE) da USP

 23/10/2018 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 05/11/2018 as 15:31

Arte sobre foto do álbum Tropicália – 1968 / Philips Records – Jornal da USP

Celso Favaretto – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


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ntre 1965 e dezembro de 1968 desenvolveu-se uma extensa e renovadora atividade artística com dimensões culturais e políticas de raro alcance crítico no Brasil. Projetos de vanguarda, em grande parte associados a interesses político-sociais, surgiram em todas as áreas da produção artística. Definiram-se duas direções prioritárias: uma arte dita de protesto associada de modo direto ou indireto às necessidades de conscientização e de mobilização do público, diante da necessidade que se impunha de resistência aos cálculos do regime militar, e uma arte de vanguarda em que o imperativo de renovação das formas, linguagens, processos e comportamentos eram considerados prioritários, tanto para a revitalização das artes frente às novas condições provocadas pela modernização, quanto ao redimensionamento crítico do imperativo de participação cultural e política.

Entre as modalidades artísticas surgidas naquele momento, a música de protesto e denúncia, em geral traduzindo a esperança em um “dia que virá”, utopia política persistente desde, pelo menos, o início da década. A música passou a ser o canal mais adequado para a veiculação de projetos políticos, exatamente porque a canção popular sempre foi no Brasil a modalidade artística com maior penetração pública, em todas as camadas da população, mesmo antes dos decisivos desenvolvimentos da indústria cultural a partir de meados de 60, quando a era dos festivais colocou em grande evidência as duas modalidades de participação, de protesto e de inovações, não sem conflitos ou intersecções entre elas quanto ao que era entendido como legítima música brasileira ou quanto aos modos mais legitimados de expressão política.

O Tropicalismo surgiu da conjunção desses vários fatores de ordem artística, cultural e política que se manifestavam na música popular, no teatro, no cinema, nas artes plásticas e na literatura. O momento de máxima intensidade e de ruptura ocorreu em 1967 e 1968, quando se configurou uma extraordinária explosão criativa, que radicalizou em termos críticos a intensa atividade renovadora da atividade artística que se desenvolvia desde meados dos anos 1950. Nesses dois anos, as inquietações e iniciativas sociais, políticas e culturais dirigidas à realização do imperativo de modernização que, desde o movimento modernista de 1922, determinava o esforço de inovação da arte, da cultura e da reflexão no Brasil são levados a seu limite expressivo.

O ano de 1967 foi particularmente notável: confluíram ao mesmo tempo o Tropicalismo, desencadeado com as músicas Alegria, alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no parque, de Gilberto Gil, apresentadas no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record; o lançamento do filme Terra em transe, de Glauber Rocha; a montagem de O rei da vela, peça de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina de São Paulo; o aparecimento do projeto ambiental Tropicália, de Hélio Oiticica, na exposição Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; e o lançamento de PanAmérica, livro de José Agrippino de Paula. Essas produções foram arroladas sob o nome genérico “tropicalismo”. Apesar de suas diferenças, havia algo em comum entre elas: arte de ruptura, de inovação das linguagens artísticas e das estratégias culturais, que propunha mudanças na significação política das ações, repropondo o sentido e as formas de participação social das atividades artístico-culturais.
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Caetano Veloso em apresentação do Festival de Música Brasileira, em 1967, no teatro Paramount – Foto: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional

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Aliando experimentalismo artístico e crítica cultural, articulando procedimentos de vanguarda e participação política, inovando a canção pela integração de efeitos e recursos não musicais, da música contemporânea e da pop, processos renovados de composição na letra, na melodia, nos arranjos e na vocalização e na elaboração das imagens com efeitos paródicos e alegóricos, a atividade tropicalista deslocou os modos de expressão do inconformismo estético e social patente na parte mais significativa da arte no Brasil dos anos 1960. Esse inconformismo, que vinha se estruturando desde os anos 1950, foi retraduzido pelo Tropicalismo, especialmente nos discos individuais de Caetano Veloso e Gilberto Gil e no coletivo, Tropicália, Panis et circencis, lançados em 1968.

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[…] o Tropicalismo apareceu como transgressão não só pelas inovações musicais, mas também por ativar comportamentos e incorporá-los à própria estrutura da canção, compondo uma poética da espetacularidade.

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O surgimento do Tropicalismo em 1967 não só provocou mudanças na situação da música popular no Brasil, colocando em discussão os limites da eficácia da canção de protesto, como marcou a absorção mais incisiva das contribuições do rock, até então experimentado de forma apenas superficial pela Jovem Guarda de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, além de referências específicas à tradição da música popular e a outras expressões populares. A complexidade do Tropicalismo nasce de sua intervenção nos modos de se fazer canção no Brasil, destacando a virada da bossa nova e explicitando possibilidades de sua função crítica. A própria materialidade da canção é modificada com a introdução de procedimentos de vanguarda (musicais, teatrais, cinematográficos, poéticos), de harmonias e ritmos do rock, de instrumentos eletrônicos, de uma elaborada encenação etc.

Além disso, a explicitação do político na canção é diferenciada: não mais há o emprego de meios didáticos de denúncia e conscientização, mas a proposição de um conjunto sincrético de imagens disparatadas que, referindo-se à “realidade brasileira”, ao mesmo tempo a estilhaçava. Evidentemente, a recepção e aceitação dessa música como ‘música brasileira’ não foram fáceis. Ela exigia, do público e da crítica, uma mudança na audição e na maneira de conceber o que poderia ser a canção popular para além do que estava fixado pela tradição. Assim, se de um lado o Tropicalismo foi recebido com entusiasmo por indivíduos associados à busca do novo, que valorizavam a estranheza como antídoto para a repetição de clichês, por outro não foi aceito pelos que consideravam esse movimento uma desvirtuação da música brasileira autêntica.

Outro aspecto importante é que o Tropicalismo apareceu como transgressão não só pelas inovações musicais, mas também por ativar comportamentos e incorporá-los à própria estrutura da canção, compondo uma poética da espetacularidade. A maneira como os artistas se apresentavam, com roupas extravagantes, cabelos desgrenhados e gestos provocativos e mesmo obscenos, compunha uma linguagem de rebeldia, de mau gosto (para o padrão da época), de cafonice, de desafio. Na verdade, estavam assimilando o corpo na canção, não apenas na temática como era comum na tradição. Aliás, nisso, a canção tropicalista vem a par com a assunção do corpo que ocorria naquele tempo em todas as áreas artísticas. Nas músicas, os temas eram coerentes com a atmosfera gerada nos espetáculos: crítica à sociedade de consumo misturada à crítica da moral, dos costumes, dos valores pequeno-burgueses; crítica das posições políticas consagradas, de direita e de esquerda; uso de resíduos culturais populares e eruditos, formando uma mistura aparentemente caótica, mas na verdade construída segundo processos poéticos de invenção.
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