O maio de 1968 – a luta dos direitos civis nos Estados Unidos

Lincoln Secco é professor livre-docente de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP)

 22/10/2018 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 23/10/2018 as 15:33

Foto: Wikimedia Commons

Lincoln Secco – Foto: Arquivo pessoal


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aris foi o epicentro de um terremoto político em 1968, mas a sua abrangência foi global: de Beijing a São Paulo; de Paris a Dakar; de Praga à Cidade do México; e de Córdoba a Berlim os protestos envolveram distintas motivações que partilhavam um fundo comum: a crise de um modo de vida.

O mundo padronizado de produção fordista e consumo em massa parecia prometer uma sociedade afluente mesmo para os países da periferia. As desigualdades de classe pareciam amenizadas, mas e as outras opressões? Os jovens não tinham vivenciado as privações da guerra como seus pais, professores e governantes e os desafiaram.

Embora Paris tenha concentrado a atenção mundial por causa de uma crise política e da maior greve operária da História, foi nos Estados Unidos que vieram a lume os movimentos que moldariam a passagem da sociedade autoconfiante dos trinta anos gloriosos para uma nova era de incertezas.

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Rumo ao Vietnã

Em setembro de 1968 centenas de mulheres queimaram seus sutiãs em Atlantic City, durante o concurso de Miss América. No dia 28 de junho de 1969, no bar Stonewall, em Nova York, aconteceu o que deveria ser uma costumeira batida policial para prender gays. Mas daquela vez eles resistiram e desencadearam tumultos que marcaram o início do gay liberation movement.

O movimento pela libertação sexual se combinou imediatamente aos protestos contra a guerra de agressão dos Estados Unidos contra o Vietnã.  A Ofensiva do Tet no primeiro dia do ano no calendário lunar do Vietnã, a 30 de janeiro de 1968, tinha sido frustrante em termos militares, mas uma vitória junto à opinião pública dos Estados Unidos.

Como revelaram os papéis secretos do Pentágono, encomendados em 1967 pelo secretário de defesa Robert McNamara e publicados quatro anos depois, a manipulação da opinião pública era crucial. O repúdio à guerra foi o estopim da revolta nas Cidades Universitárias. E o surgimento dos Panteras Negras, o seu efeito mais significativo.

 

Todo poder ao povo

1968 também foi o ano em que Martin Luther King, ícone da vertente pacifista do movimento negro, foi morto. Na época o diretor do FBI Edgard Hoover o considerava um radical e o mantinha sob vigilância.

Foi depois daquele assassinato que o Black Panther Party se fortaleceu. A organização atuou entre 1966 e 1982, inspirada nas variantes terceiro-mundistas do marxismo. Incorporou a causa gay e feminista. Elaine Brown se tornou presidente entre 1974 e 1977 depois que Huey Newton teve que ir a Cuba, devido às acusações de assassinato que pesavam contra ele.

O partido foi uma ameaça permanente ao governo. Não porque pudesse em algum momento conquistar o poder, mas porque danificava a imagem de uma democracia apoiada em séculos de escravidão e numa legislação abertamente racista.

Para combatê-lo as agências de segurança do governo prenderam seus líderes e difundiram drogas baratas nos seus bairros. Diante de uma perseguição implacável e de um sistema eleitoral impenetrável, os Panteras Negras consideravam que sua política não podia ser implementada com uma cédula (ballot), somente com uma bala (bullet), na forte expressão de Kathleen Cleaver, uma das líderes do partido. No entanto, eles estiveram longe de uma luta armada e solicitavam principalmente o direito constitucional de portarem armas e serem julgados por iguais, isto é: negros.

Angela Davis em Moscou, 1972

Hannah Arendt, uma defensora dos direitos civis, constatou que a violência só entrou em cena com o Black Power nos campi, mas liderada por estudantes negros “aceitos sem as qualificações necessárias” e com o “interesse em diminuir os padrões acadêmicos”, ao contrário das “reivindicações morais desinteressadas de alto nível dos rebeldes brancos” (On Violence, 1969). 

Em Zabriskie Point (1970), de Antonioni, o fenômeno foi percebido por outro ângulo, o dos próprios negros, quando Kathleen Cleaver aparece nas cenas semidocumentais do filme numa assembleia estudantil.

O fato é que o discurso dos estudantes brancos não tinha apoio fora da universidade, enquanto os negros em Oakland ou qualquer outro lugar perfaziam uma luta comunitária que colocava em xeque o sistema como um todo, muito mais do que a performance dos situacionistas franceses ou a contracultura hippie da Califórnia.

Foi neste Estado que um juiz decretou a prisão de Angela Davis, liderança negra e professora no Departamento de Filosofia da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Em outubro do ano seguinte agentes do FBI a prenderam e o próprio presidente Nixon os congratulou pela captura de uma “perigosa terrorista”.

Além de 200 comitês locais pela libertação de Angela nos Estados Unidos, houve outros 67 no exterior. Um fazendeiro branco pagou sua fiança e vários músicos a homenagearam em canções, como os Rolling Stones, Bob Dylan, John Lennon e Yoko Ono. Não fazia sentido para aquela geração separar cultura e política. Enfim, ela foi inocentada.

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50 anos depois

O romancista negro James Baldwin deixou um manuscrito inacabado sobre os assassinatos de três líderes da luta pelos direitos civis: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. O cineasta Raoul Peck usou o manuscrito como roteiro de seu filme Eu não sou o seu negro.

É provável que Baldwin não se surpreendesse que ainda em 2014 haveria motins como o black lives matter, mas dificilmente pensaria que seu manuscrito originasse um documentário indicado ao Oscar em 2016. No mesmo ano, Moonlight, uma película com elenco só de negros, conquistou o prêmio de melhor filme. Obra de uma beleza rara como se fosse um Bildungsroman, ela revela o crescimento de um ser humano e sua difícil aceitação social como negro e gay. O próprio Baldwin vivenciou essa condição e retratou o tema em seu livro O quarto de Giovanni, rejeitado pelas editoras em 1954.

O escritor James Baldwin – Foto: Allan Warren/Wikimedia Commons – Foto: Allan warren/Wikimedia Commons

Se a ampliação da cultura de tolerância, da literatura negra e de filmes reconhecidos pelo establishment são um atestado das mudanças que 1968 despertou nas mentalidades, as regressões políticas estão sempre à espreita. A história é tudo, menos uma caminhada idílica rumo à felicidade.

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