Precisando de um romance?

Laboratório da USP indica 14 livros para se aventurar no gênero

Há dez anos estudando o tema, Laboratório de Estudos do Romance mantém encontros virtuais e oficinas no YouTube

11/12/2020 - Por Tabita Said

Do exercício de cultivar plantas à procura por cursos, certamente a leitura se destaca entre as atividades mais procuradas da quarentena. Tanto aquela voltada para aprofundar conhecimentos específicos quanto a leitura despretensiosa, de quem abre as páginas do livro – ou do ebook – para se ver preso numa narrativa de entretenimento.

E dentre as possibilidades de gêneros literários, os romances predominam na pandemia. Eles figuram entre os livros mais comprados em 2020. O romance distópico de George Orwell, 1984, voltou à lista de mais vendidos da gigante Amazon. E clássicos como Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, seguem singulares em número de cópias: estima-se que já tenham sido vendidos 600 milhões de exemplares.

Mas o romance não atrai apenas leitores, ele também é objeto de interesse da academia. Na USP, um grupo de pesquisadores se dedica a estudá-lo dentro da dimensão histórica e de teoria crítica. A professora Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, trabalha com o tema há pelo menos 40 anos.

Há quase dez, ela criou e co-coordena o Laboratório de Estudos do Romance (LERo), junto do professor Jorge de Almeida, do Departamento de Teoria Literária da FFLCH. Sandra conta que a vocação do laboratório é reunir pessoas, tanto do ponto de vista do ensino, da pesquisa, como da extensão universitária. “A ideia sempre foi, desde o começo, aproximar alunos, pesquisadores, professores e interessados em romance, em geral. Sem propor um recorte nacional, nosso foco é o romance como gênero e isso agrega muita gente.” 

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, coordenadora do Laboratório de Estudos do Romance da FFLCH USP - Foto: Arquivo pessoal

O Romance

O romance já foi descrito como a mais flexível de todas as formas. Uma de suas características é a capacidade de subverter o próprio gênero ao qual pertence, de aglutinar outras formas literárias em seu interior. A indefinição do gênero pode ser sua maior marca.

É sob a premissa de tentativa de representação (ou mimese) daquilo que é considerado “real” que o gênero romance se desdobra, desde os seus primórdios, a fim de conceber diferentes modos de interpretação dos acontecimentos humanos.

Outra característica do gênero é sua associação, historicamente falando, com a burguesia, uma vez que o romance irrompe concomitantemente a essa emergente classe social e a seu ideário de liberdade e de individualização. 

O romance, ao contrário de formas literárias que o precederam, traz à cena aquilo que se relaciona com o mundano, o ordinário – a épica do mundo prosaico. Sendo a narrativa da modernidade, o discurso do romance só poderia ser aquele que se refere ao tempo presente.

Sua matéria é o indivíduo; seu universo, o mundo empírico ao invés do mundo mítico; seu interesse, a existência diária ao contrário da odisseia; seu desafio, a descoberta do próprio caminho em oposição à submissão ao destino imposto pelos deuses. Seu protagonista é o homem ou a mulher comuns, não as divindades clássicas.

Clássicos e ignorados

Se fizermos uma metáfora do romance, chegaremos a um emaranhado de fios que nem sempre se conectam. Mas há duas noções importantes para entender a produção das obras em toda a sua diversidade.

“De modo geral, costumamos trabalhar com os chamados romances canônicos, que também são descritos como clássicos. São grandes nomes que fazem a glória do gênero. Evidentemente, há também os romances não canônicos, que a história da literatura esqueceu ou ignorou. Durante muito tempo, a produção feminina raramente foi considerada como digna de pertencer ao cânone. No entanto, há toda uma revisão do que é esse cânone para, justamente, incorporar a obra dos romances escritos por mulheres, por exemplo, ou pelas ditas minorias”, explica a professora. 

Ela faz questão de ressaltar que essas categorias são muito flexíveis e que um mesmo romance pode despontar em diferentes definições. 

Um romance feminista pode fazer parte do cânone e ser anti-hegemônico ao mesmo tempo! Por isso, uma das coisas mais difíceis que um professor de literatura enfrenta é desfazer certas simplificações cristalizadas que os alunos carregam desde o ensino médio

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos

Compartilhando com o público

Um dos destaques das atividades do laboratório, além da pesquisa, são eventos voltados ao público em geral. Neste ano, toda a programação foi organizada em ambiente on-line. Como resultado, viu crescer o número de interessados em suas oficinas, palestras e simpósios. As lives ocorreram em plataformas de streaming e algumas delas foram disponibilizadas no canal do youtube do laboratório

“A amplitude do alcance desses eventos nos fez pensar em continuar a mantê-los on-line. Pessoas do país inteiro interagindo no chat, que jamais teriam condições de estar dentro da USP para acompanhar um evento desses. Vemos quanta gente é atraída por esses assuntos, muitos são aqueles que Virginia Woolf denominou ‘leitores comuns’”, destaca a coordenadora do LERo.

Envolvida na organização e divulgação dos eventos do laboratório, a aluna de graduação Rafaella Gobbo Reis da Silva conta que, além do aumento do público, as redes possibilitaram um rico intercâmbio com professores e pesquisadores de outros países, além de uma parcela do público não universitário.

“Não seria possível se não fosse nesse formato. É uma experiência enriquecedora, de tocar várias pessoas. Porque esse tipo de conhecimento não pode ficar restrito, ele precisa sair dos muros da universidade”, afirma.

De acordo com a estudante, a segunda Semana do Romance Gótico, evento organizado pelo laboratório, obteve 7,8 mil visualizações no YouTube, no total. “Jamais teríamos um público dessa dimensão em um auditório com capacidade para cem pessoas”, compara Sandra.

Rafaella Gobbo Reis da Silva, aluna de graduação que faz parte do Laboratório de Estudos do Romance da FFLCH USP - Foto: Arquivo pessoal​

Como se aventurar pelo mundo dos romances

Para quem conhece o gênero e quer um percurso “guiado” para escolher as obras ou mesmo quem ainda não tem afinidade e pretende se iniciar neste universo, o LERo indicou ao Jornal da USP 14 leituras para percorrer uma trajetória do romance. Começando pelos títulos que marcam a ascensão do gênero, o seu auge, momento de crise e aqueles mais contemporâneos.

Ascensão do romance

Rebento do espírito democrático de processos sociais, históricos e filosóficos de seu período, o romance ascende ao mesmo tempo em que busca espaço — através de extensivas experimentações formais e a constante tentativa de “autovalidação” — na tradição literária.

Dom Quixote

Miguel de Cervantes

Robinson Crusoé

Daniel Defoe

Ligações Perigosas

Pierre Choderlos de Laclos

Auge

Entre o final do século XVIII e meados do século XIX, o romance atinge seu mais alto grau de amadurecimento. É nesse terreno fértil que assistimos à gradual cristalização de sua forma como também aos desdobramentos de uma época marcada por intensas agitações no tecido social e pela consolidação do poder da burguesia.

Orgulho e Preconceito

Jane Austen

Grandes Esperanças

Charles Dickens

Memórias Póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis

Anna Karenina

Liev Tolstói

Crise

A forma, que até o fim do século XIX havia se cristalizado, passa a questionar as consagradas convenções do gênero. É um momento de crise tanto da narrativa quanto da organização socio-histórica. Uma geração horrorizada pelas experiências da guerra, do imperialismo, da luta de classes. Ao desafiar elementos constitutivos do romance — como as noções de perspectiva, temporalidade, espacialidade, enredo  —, os autores desse período exploram uma outra maneira de radicalizar a representação do “real” a partir da relativização de aspectos da experiência e do mergulho na subjetividade.

O Processo

Franz Kafka

Ao Farol

Virginia Woolf

Ulisses

James Joyce

Jogo da Amarelinha

Julio Cortázar

Contemporâneos

Se tudo o que é sólido se desmancha no ar, assim operam as narrativas contemporâneas da metade do século XX até agora. São romances que procuram reimaginar formalmente sua relação com uma nova era. Dentre as suas novas bases, estão a indústria cultural, o neoliberalismo, o pós-guerra, a condição pós-colonial, as discussões acerca da sexualidade, as questões de gênero, o pós-modernidade. Os antigos ideais da modernidade caem por terra, agora incertos e questionáveis, cedendo lugar a representações narrativas do mundo que buscam novos modelos de comunidade.

2666

Roberto Bolaño

Arco-Íris da Gravidade

Thomas Pynchon

1Q84

Haruki Murakami

Arte: Thais H Santos