Dados mostram que ciência brasileira é resiliente, mas está no limite

Relatório da Unesco indica que, mesmo com redução drástica dos investimentos em pesquisa no País, produção científica brasileira segue crescendo – por enquanto

 11/06/2021 - Publicado há 3 anos
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Ciência – Foto: kjpargeter – Freepick

 

Resiliência. Essa tem sido a principal característica da ciência brasileira nos últimos anos, segundo Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e coautor de um relatório especial da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre investimentos em pesquisa e desenvolvimento no mundo, no período 2014-2018. Os números mostram que, mesmo com uma redução drástica dos orçamentos destinados a ciência e tecnologia no Brasil, a produção científica do País continuou crescendo — pelo menos até agora.

“A característica fundamental da ciência e do cientista brasileiro é uma única palavra: resiliência”, destacou Chaimovich, no evento que marcou o lançamento do relatório no Brasil, realizado nesta sexta-feira, 11 de junho. “Mas a resiliência tem um limite”, completou o professor, que assina o capítulo brasileiro do relatório em parceria com o matemático Renato Pedrosa, especialista em políticas de ciência, tecnologia e educação superior, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

O brasileiro em geral está acostumado, por força das circunstâncias, a fazer muito com pouco; mas não existe milagre, especialmente na ciência. A redução do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) no período 2014-2018 (contemplado pelo relatório da Unesco) foi da ordem de 50%, segundo dados também compilados por Chaimovich e publicados na edição mais recente da revista Pesquisa Fapesp. E de lá para cá, a situação só piorou. De 2012 para 2021, a redução é de dramáticos 84% — de R$ 11,5 bilhões para R$ 1,8 bilhão, em valores atualizados pela inflação. 

Fonte: Pesquisa Fapesp 06/2021

 

“Insisto: essa resiliência tem limite”, reforçou Chaimovich, que já foi presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de fomento à pesquisa do governo federal — cujo orçamento foi drasticamente cortado, também, nos últimos anos. Uma das tendências que mais preocupam é a redução da oferta de bolsas de pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado), que sustentam a maior parte da mão de obra da produção científica nacional. “A pós-graduação é a base na qual se sustenta a produção intelectual brasileira, inclusive a produção científica”, afirmou Chaimovich. 

Essa produção é medida, principalmente, pelo número de trabalhos científicos publicados em revistas internacionais, que vem aumentando linearmente há muitos anos no Brasil (e no mundo). Apesar de todas as dificuldades, o País se mantém como o 13º maior produtor de conhecimento científico no mundo, com participação em 372 mil trabalhos publicados internacionalmente no período 2015-2020, segundo um relatório recente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), organização social vinculada ao MCTI. Isso equivale a 3% da produção científica mundial acumulada no período. Os principais temas abordados pela ciência brasileira nesses últimos cinco anos, segundo o relatório, foram educação, biodiversidade, nanopartículas, pecuária e agricultura.

Fonte: CGEE – Panorama da Ciência Brasileira 2015-2020

De um ponto de vista mais amplo, segundo os dados apresentados no relatório, o investimento total em atividades de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico (P&D) no País, proporcionalmente ao seu produto interno bruto (PIB), aumentou de 1,08% em 2007 para 1,34%, em 2015, depois caiu para 1,26%, em 2017. Hoje estima-se que esteja em torno de 1% (ou menos); bem abaixo do nível de países desenvolvidos, como os Estados Unidos e Alemanha (que se aproximam de 3%), e da China (2,2%), que se consagra no relatório da Unesco como a nova grande potência do setor. 

Os números do gigante asiático são impressionantes. Entre 2008 e 2018, a China aumentou em 225% seu gasto bruto com pesquisa e desenvolvimento (GERD, na sigla em inglês), quase empatando com os Estados Unidos no top do ranking de países que mais investem nessa atividade — mesmo em momentos de crise ou recessão econômica.

Fonte: Unesco Institute for Statistics (Fact Sheet n. 59; Junho 2020)

 

Olhando para o cenário global, os dados da Unesco mostram que houve um aumento significativo, de 19%, nos investimentos globais em pesquisa e desenvolvimento no período 2014-2018, além de um aumento de quase 14% no número de cientistas no mundo. O que é positivo. Porém, o relatório destaca que esse crescimento se deu de forma bastante desigual pelo mundo — puxado em grande parte pela China, Estados Unidos e União Europeia. A desigualdade de gênero também permanece alta: apenas 33% dos pesquisadores no mundo em 2018 eram mulheres, comparado a 28% em 2013.

No Brasil, os dados mostram uma descentralização regional importante dos gastos com pesquisa e desenvolvimento nos últimos anos. O Estado de São Paulo permanece como o grande polo de produção científica e tecnológica brasileiro, concentrando cerca de 70% dos gastos com P&D no Brasil em 2017; um número ainda alto, porém menor do que os 83% de 2002. Com o colapso do orçamento do MCTI nos últimos anos, porém, é possível que essa concentração volte a crescer. “Tirando São Paulo, os outros Estados dependem do governo federal”, ressaltou Pedrosa, da Unicamp. Na questão de gênero, as mulheres são maioria (54%) no número de doutores formados no País já há alguns anos; mas ainda há desigualdades importantes a serem equacionadas no mercado de trabalho, em termos de contratação e salários. 

Do ponto de vista temático, a Unesco chama a atenção para a necessidade de mais pesquisas voltadas para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), envolvendo assuntos como mudanças climáticas, segurança hídrica, segurança alimentar, energias limpas, justiça social e pobreza. Apesar do aumento global do número de publicações científicas nos últimos anos, muito desse crescimento foi mais direcionado para áreas como Inteligência Artificial e robótica, e muito menos para temas urgentes de sustentabilidade, como sequestro de carbono da atmosfera e substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis.

Momento simbólico

A cientista social Marlova Noleto, representante da Unesco no Brasil, disse que o relatório chega num “momento simbólico”, em que, “cada vez mais, todos nós reafirmamos a nossa aposta no poder da ciência”. 

“Apesar dos bolsões de negacionismo, da disseminação da desinformação — as famosas fake news — e do ressurgimento de trágicos e tristes movimentos antivacina, a ciência segue se mostrando potente e vitoriosa, e cada vez mais importante para todos nós”, afirmou Marlova. “No último ano, todos nós sonhamos com uma vacina. E o que proporcionou essa vacina? A cooperação científica internacional”, ressaltou. Os dados do relatório mostram que a cooperação internacional entre cientistas aumentou globalmente de 18,6% em 2011 para 23,5%, em 2019. Nesse quesito o Brasil vai bem: 34% das pesquisas publicadas por cientistas brasileiros são feitas em colaboração com colegas de outros países.

Os desafios impostos pela pandemia desde o início de 2020 serviram para expor tanto pontos fortes quanto vulnerabilidades do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. O Brasil é um dos países que mais produziram conhecimento científico sobre covid-19 até agora, e a capacidade do Instituto Butantan e da Fiocruz de absorver rapidamente a produção de vacinas desenvolvidas com tecnologia estrangeira é, também, prova da resiliência e da qualidade científico-tecnológica instalada nas instituições de pesquisa do País, avalia Chaimovich. Por outro lado, a falta de investimentos tem atrasado o avanço de vários projetos de desenvolvimento de vacinas nacionais, que são essenciais para garantir a autonomia do País no enfrentamento da pandemia a médio e a longo prazo.

“Se o investimento tivesse sido adequado, pelo menos três vacinas brasileiras já estariam no mercado”, aposta Chaimovich — referindo-se a projetos liderados por cientistas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP; do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP; e do Centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (todos apoiados pela Rede Vírus, do MCTI). “Uma lição que deve ficar é a necessidade de agilidade”, completa Pedrosa.

Vários outros projetos de desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 também são liderados por pesquisadores da USP, como mostra esta reportagem do Jornal da USP.


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