Revistas do acervo da ECA USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Acervo de revistas antigas permite revisitar costumes de nossos pais e avós

De publicações alternativas até revistas de moda, espaço na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP tem mais de 70 mil exemplares de revistas desde os anos 1940

 04/08/2023 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 07/08/2023 as 16:22

Elaine Alves*

Uma matéria de 1961 em uma revista traz na manchete Palmadas: sim ou não? O texto, veiculado em um dos primeiros exemplares da revista Claudia, trazia um tema que podia ser considerado polêmico para a época ao dar voz aos pais para opinarem sobre a prática ser ou não necessária para a educação de seus filhos. 

Publicações como esta, que ajudam a entender melhor o passado, fazem parte do acervo especial de revistas da biblioteca da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A coleção abrange 71.164 fascículos, que incluem publicações acadêmicas, revistas de notícias, periódicos da imprensa alternativa das décadas de 1960 e 1970, revistas sobre televisão, publicações direcionadas aos públicos feminino, masculino e infantil, além de revistas humorísticas e outros gêneros. São registros que podem ser considerados fontes históricas e que representam práticas de consumo, usos e costumes de uma época, e estão disponíveis para consulta na biblioteca por estudantes, pesquisadores e para o público geral.

É possível encontrar, por exemplo, a coleção quase completa do jornal O Pasquim, com números publicados desde 1969. A publicação chegou a ser considerada o porta-voz da indignação popular no período da ditadura militar brasileira. As revistas Manchete, Cigarra, Realidade e O Cruzeiro — atualmente extintas — também estão incluídas no acervo, esta última com exemplares a partir de 1947, bem como os títulos especializados em áreas culturais, como as publicações de cinema Cinemin, Set e Cine-olho. Importantes jornais da mídia alternativa, entre os anos 1970 e 1980, foram o Opinião (escrito por jornalistas e intelectuais opositores à ditadura) e o Lampião da Esquina (sobre o universo LGBTQIAP+) que também podem ser encontrados no acervo.

Walber Lustosa, bibliotecário, no acervo de revistas da ECA - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Uma das publicações mais consultadas, de acordo com Walber Lustosa, bibliotecário de atendimento e referência da ECA, é a revista Intervalo, que discorria sobre astros da televisão, programação dos canais, programas humorísticos, telejornais e telenovelas. Ainda no segmento de entretenimento, o local mantém um acervo de fotonovelas, como a Capricho, a Grande Hotel e a Amiga, além de um exemplar de Supernovelas Capricho. Essas publicações foram populares no Brasil durante os anos 1950 até a década de 1970 e eram carregadas de caráter sentimental, com leitura fácil, para atingir o grande público feminino. Elas eram apresentadas no formato de quadrinhos fotográficos sequenciados e eram os títulos mais importantes em grandes editoras, como no caso da editora Vecchi, com a Grande Hotel, e da editora Abril, com a Capricho.

Edição de O Pasquim (na Biblioteca da ECA, é possível encontrar exemplares desde 1969) e exposição de capas da revista Realidade na biblioteca - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Revistas antigas como fonte de pesquisa

O acervo de revistas foi concebido para atender às necessidades dos alunos do curso de Jornalismo, dado que esse tipo de material poderia ser utilizado como objeto de pesquisa. Atualmente, a coleção especial da Biblioteca da ECA continua a ser requisitada pelos pesquisadores. “Os estudos e pesquisas realizados nesta coleção são bem diversos, há desde pesquisadores interessados em traçar um quadro de qual era a representação de grupos minorizados; pessoas buscando informação sobre como foi noticiado um evento de 50 anos atrás; comparações do viés de publicações na abordagem de determinado assunto etc.”, explica Lustosa. O bibliotecário também afirmou que pesquisadores de outras instituições e até mesmo de outros estados visitam a coleção.

Uma dessas pesquisadoras é Juliana Malacarne, editora-assistente da revista Crescer e doutoranda da ECA, que durante o desenvolvimento de sua tese de doutorado teve a ideia de unir a pesquisa acadêmica à sua área profissional. No mestrado, ela já havia estudado a representação da maternidade no cinema, mas decidiu que em seu novo estudo iria levar essa mesma análise para as revistas. Para entender a mudança nos discursos de maternidade entre os anos 1960 e a contemporaneidade, a doutoranda resolveu analisar os fascículos da publicação Pais & Filhos disponíveis no acervo da ECA. “Quando fiz a pesquisa na biblioteca, não sabia exatamente o que ia encontrar lá. Só soube como os discursos funcionavam na década de 1960 quando entrei em contato com o acervo da ECA. Ele foi muito importante para o desenvolvimento do meu trabalho”, conta Juliana.

Disponíveis para pesquisadores (e curiosos), biblioteca tem revistas como Manequim, Capricho e Grande Hotel. Esta última era um título da editora Vecchi que foi sucesso na esfera de fotonovelas a partir dos anos 1950 - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Na biblioteca, é possível encontrar diversos exemplares da Pais & Filhos, com títulos desde 1969. A publicação levava aos lares brasileiros uma nova concepção sobre a educação dos filhos, enquanto mostrava que a responsabilidade pelas crianças não era exclusivamente da mulher, conforme ressaltam os bibliotecários da ECA em sua página. A revista abordava temas como saúde, educação e comportamento — das crianças e de suas respectivas famílias. 

Além das revistas antigas, as coleções especiais da Biblioteca da ECA abrangem livros, partituras e histórias em quadrinhos. Como estes itens precisam de medidas diferenciadas de conservação, eles são mantidos em ambiente separado do acervo geral da biblioteca.

Edições da revista Amiga, que abordava o universo das celebridades e os bastidores da televisão, estão disponíveis na Biblioteca da ECA - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Termômetro de costumes

“É crescente o número de pesquisadores que vêm à Biblioteca em busca de títulos desta coleção por seu valor inestimável como fonte de pesquisa para compreender momentos vivenciados em nossa história”, destacam os bibliotecários da ECA em publicação na internet.

As revistas femininas são um dos destaques do acervo neste contexto. Os bibliotecários destacam como exemplo a revista Claudia, da qual possuem exemplares desde 1961, que tem sido bastante procurada por pesquisadores devido ao seu “papel revolucionário no segmento de revistas dedicadas ao público feminino”. Em outro título, a revista Manequim, é possível encontrar não apenas tendências de moda daquele período, mas também um retrato do papel da mulher na sociedade dos anos 1950 e 1960.

Mesmo a revista Manchete, que desde 1952 abordava atualidades, pode ser analisada por meio da representação feminina veiculada. “As mulheres das capas são geralmente jovens, brancas, exibindo seus corpos. Quanto aos homens que aparecem nas capas, podem ser velhos, ter rugas, afinal, ao contrário das mulheres, não estão ali para terem seus corpos avaliados”, destaca Lustosa. 

Saiba mais sobre as revistas femininas que estão no acervo da Biblioteca da ECA:

Edições dos anos 1960 da revista Capricho, famosa por suas fotonovelas na época - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Capricho

A revista Capricho foi a primeira revista feminina brasileira, fundada em 1952. Nos primeiros anos, a publicação era conhecida por suas fotonovelas — romances contados em formato de quadrinhos. Aos poucos, foi adicionando temas relacionados à moda e beleza em suas edições. Ao final da década de 1960, as personagens femininas começaram a usar roupas mais modernas, como minissaias e maiôs. 

Uma edição dos anos 1960, disponível na Biblioteca da ECA, trazia a seção A boa dona de casa. Nesse texto, a Capricho oferecia dicas sobre como uma boa dona de casa poderia preparar um piquenique que agradasse a todos: “uma autêntica arte na qual a boa dona de casa poderá distinguir-se”. 

Trecho de fotonovela veiculada na revista - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Além disso, após uma pesquisa de opinião, a Capricho desenvolveu um artigo intitulado As coisas que ele não diz, publicado na mesma edição. O texto revelava o que os homens pensavam sobre as mulheres em relação às suas ações, comportamento em público e de que modo elas poderiam se tornar mais atraentes para eles.

Com esta edição da Capricho, ainda é possível analisar os anúncios que eram comuns no período. A campanha O Mário rompeu comigo… diz que sou a Rainha do Desânimo… promovia um tônico que prometia transformar as mulheres em rainhas do entusiasmo e da alegria, garantindo que seus pretendentes iriam voltar.  

Na década de 1980, a Capricho muda completamente seu foco para o público jovem e adolescente. Em 2015, a editora Abril cessou a circulação impressa da revista, após mudanças profundas na empresa. Até os dias atuais, a publicação é veiculada exclusivamente em seu portal digital. Na Biblioteca da ECA, é possível consultar exemplares da revista desde 1959 até 2006.

Jóia

Na Biblioteca da ECA, existem aproximadamente 60 exemplares da revista Jóia, cuja primeira edição data de 30 de novembro de 1957. A publicação abordava variedades destinadas ao público feminino, com destaque para conteúdos sobre moda, permitindo um registro fotográfico da história da moda no Brasil. 

A revista Jóia publicava conteúdos de moda, crônicas e entrevistas - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em uma das edições dos anos 1960, por exemplo, é possível se deparar com um ensaio fotográfico do francês Guy Bourdin — um dos melhores fotógrafos de moda do mundo — em Brasília, a nova capital do País. 

No mesmo número, há um ensaio denominado A moda conta a história do Brasil, que utilizou vários adereços e obras de museus brasileiros como inspiração. Na época, Jóia também deu destaque para um ensaio de Carmen Miranda, considerada uma das mais importantes artistas brasileiras da época. 

Carmen Miranda, conhecida por seus chapéus ilustres, já foi destaque em uma edição da Jóia - Foto: Elaine Alves/Arquivo Pessoal

No entanto, as pautas de Jóia não se resumiam apenas à moda. De forma literária, a revista publicava textos como Cartas de amor a Julieta, que aborda as cartas que o zelador do túmulo de Julieta — local onde os amantes do romance de Shakespeare supostamente morreram — recebia de grupos que desejavam conhecer o local, em Verona, e de pessoas que enviavam confidências amorosas, ou cartas de amor, para Julieta. 

Casa de Julieta em Verona, citada em texto veiculado na revista - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Entre os editoriais de moda e contos românticos, a revista Jóia reservava espaço para suas leitoras expressarem suas dúvidas por meio de uma seção chamada Pergunte o que quiser. De acordo com o periódico, os mais diversos tópicos, desde questões trabalhistas até a maternidade, eram respondidos com o auxílio de especialistas. Os anúncios de produtos de beleza também recebiam destaque na revista, bem como os moldes de costura disponíveis nas edições, que permitiam às mulheres confeccionarem suas próprias roupas.

Manequim

Exemplar da revista Manequim disponível na Biblioteca da ECA - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Fundada em 1959, a Manequim é uma revista que abrange majoritariamente conteúdos de moda e costura. A publicação contava com várias seções sobre informações relacionadas a moda, decoração e culinária, além de um caderno de moldes de costura para a leitora que quisesse reproduzir o visual em casa. 

Em seus primeiros números, a revista englobava as seções Beleza, Conto, Cozinha e Moda, além de segmentos diversos como o ABC da garota moderna — um guia de etiqueta de como se portar, principalmente em relação a rapazes —, Conselhos de Mônica, Decoração e Etiqueta. Na publicação, também era possível encontrar guias de costura e galeria de retratos astrológicos.

Na seção de moda, existia uma pequena revista dentro da Manequim que abordava “qual o último complicadíssimo passo de dança, qual o boné mais ‘bárbaro’, qual o cantor mais ‘formidável’ e qual a sainha mais ingenuamente ‘sexy’”. A moda-horóscopo também era destaque e, de acordo com a revista, ela mostraria a todos que as estrelas (do céu) têm algo a ver com a sua aparência e com a sua moda. 

Além dessas tendências, a revista veiculava anúncios de produtos de beleza como a cinta eletrotérmica que prometia à leitora perder 80 gramas de gordura por hora, sem prejudicar a saúde. 

Atualmente, o conteúdo da Manequim inclui ensaios, reportagens e dicas de moda, bem como tendências nacionais e internacionais, e ainda conta com o caderno de moldes com explicações passo a passo para a leitora. A Biblioteca da ECA dispõe de aproximadamente 90 exemplares da revista para consulta.

Vestido branco, uma das tendências de moda dos anos 1960 na Manequim - Foto: Elaine Alves/Arquivo Pessoal

ABC da garota moderna e Galeria dos retratos astrológicos na revista Manequim - Foto: Elaine Alves/Arquivo Pessoal

Edições dos anos 1960 e 1970 da Claudia estão disponíveis no acervo de coleções especiais da Biblioteca - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Claudia

Fundada em 1961, Claudia foi uma das primeiras revistas direcionadas ao público feminino com um design gráfico moderno e inovador para a época. Conforme explica a pesquisadora Maria Paula Costa em sua tese Entre o sonho e o consumo: as representações femininas na Revista Claudia (1961-1985), o período foi marcado por um processo de mudanças de hábitos, costumes e comportamentos influenciados pela crescente urbanização e pela ideia de modernização pela qual os grandes centros urbanos passavam. 

A publicação surgiu como “amiga da leitora” e tentava romper com a fórmula que antes existia em mercados editoriais similares. Antes da Claudia era comum encontrar produtos que reforçavam comportamentos submissos e relacionamentos idealizados às mulheres, como as fotonovelas.  

A matéria Palmadas: sim ou não? discutia se os castigos e palmadas são as melhores maneiras de pais disciplinarem seus filhos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Por outro lado, essa mesma edição contém uma coluna chamada Precisa-se de esposa ciumenta que fornece informações em tópicos que, caso a leitora concordar (ou discordar) ela pode ser considerada ciumenta, ou não. No entanto, segundo a autora do texto, Dona Letícia, se a esposa não fosse ciumenta ela deveria “se esforçar para ser e conseguir remediar essa falha”. Ainda que a revista tenha veiculado esse tema, há uma nota da redação ao final do texto: “A direção de Claudia (sendo composta em grande parte por representantes do sexo forte) deixa à Dona Letícia a inteira responsabilidade de suas informações”.

A seção O assunto é… publicava notícias sobre o universo das celebridades internacionais - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Nos anos 1970, a liberdade sexual era comumente debatida na publicação. A matéria Raquel fala de amor e sexo apresentava a atriz Raquel Welch, sex symbol dos anos 1960, para falar sobre o tema. A celebridade estadunidense assumia sua condição de “mulher-objeto” no texto e refletia que mulheres também deveriam tratar homens como objetos sexuais se desejam igualdade de gênero.

Já a coluna Tudo sobre seios abordava como seios bonitos, jovens e firmes “são o grande sonho da maioria das mulheres”. Para as insatisfeitas com seus corpos, a revista fornecia uma “orientação” completa para a estética dos seios com todos os cuidados, tratamentos em institutos de fisioterapia, plásticas e métodos de recuperação da flacidez. 

Seção trazia dicas de como deixar os seios firmes e proporcionais - Foto: Elaine Alves/Arquivo Pessoal

Atualmente, a revista continua a ser um sucesso entre as mulheres, com uma tiragem mensal de 160 mil exemplares — número próximo a sua primeira publicação, de 150 mil exemplares. Na Biblioteca da ECA, é possível encontrar mais de 500 exemplares disponíveis para consulta.

Biblioteca da ECA - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A consulta à coleção de revistas da Biblioteca da ECA é realizada sob demanda, mediada por um funcionário da biblioteca, e está disponível para todos que tiverem interesse, sejam membros da comunidade USP ou externos à Universidade. Para consultar os títulos, é possível agendar um horário pelo telefone 3091-4071 ou pelo e-mail ecabiblioteca@usp.br. Entretanto, o agendamento não é obrigatório, basta chegar ao local durante o horário de atendimento, das 9h às 20h, e informar ao funcionário o título e período desejados. O empréstimo não é permitido. 

Para saber todos os exemplares que a Biblioteca da ECA disponibiliza, acesse este link. Buscas específicas de títulos podem ser feitas por meio dos catálogos on-line da USP, tanto o Dedalus, quanto o Portal de Busca Integrada.

*Estagiária sob supervisão de Thais Helena dos Santos


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