A autonomia universitária na USP 30 anos depois

Livro aponta que Universidade quase sempre considerou apenas o aspecto financeiro da autonomia prevista em decreto de 1989

 08/06/2018 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 11/06/2018 às 16:16
Os autores de Os desafios da autonomia universitária, Paulo Muzy e José Drugowich – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Em fevereiro de 2019, completa 30 anos a publicação do Decreto 29.598 do então governador do Estado de São Paulo Orestes Quércia. Ele dispõe sobre providências visando à autonomia universitária da USP, Unicamp e Unesp. A principal finalidade do decreto foi garantir um orçamento próprio para as universidades paulistas, fixado a partir de um porcentual do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

A determinação aplicou na prática o que a Constituição Federal de 1988 assegurava para todas as universidades brasileiras: autonomia didático-pedagógica, administrativa e de gestão financeira.

Esse é o contexto inicial do livro Os desafios da autonomia universitária – a história recente da USP, da Paco Editorial, que será lançado no próximo dia 18 de junho, em São Paulo. Além de contextualizar a publicação do decreto de 1989, os autores Paulo Muzy e José Roberto Drugowich discutem o conceito de autonomia universitária e como ela funcionou na USP ao longo desses quase 30 anos. A obra tem prefácio de Carlos Vogt, ex-reitor da Unicamp.

Tanto Muzy quanto Drugowich participaram dos bastidores da criação do documento de 1989. Enquanto o primeiro atuava no governo do Estado, o segundo participava da gestão da Universidade. Na última gestão da USP (2014-2017), os dois trabalharam como assessores do reitor.

Ex-secretário de Estado adjunto, chefe de gabinete nas secretarias de Estado da Agricultura e de Ciência e Tecnologia de São Paulo, e ex-presidente da Fundação Prefeito Faria Lima (Cepam), Muzy se formou no Instituto de Física da USP, onde realizou sua vida científica ao lado do professor Mário Schenberg.

Drugowich também é físico graduado pela USP e professor titular aposentado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. Ele foi chefe de gabinete da Reitoria da USP, coordenador da Administração Geral (Codage) da Universidade e diretor do CNPq.

Os autores fizeram um extenso levantamento bibliográfico para reconstruir essa história em 350 páginas. Desde textos da imprensa, documentos, autores que explicam o conceito de autonomia universitária e entrevistas.

Entre os entrevistados estão os professores José Goldemberg, ex-reitor da USP e atual presidente da Fapesp; Arthur Roquete de Macedo, ex-reitor da Unesp; Erney Plessmann de Camargo, ex-pró-reitor de Pesquisa da USP e ex-presidente do CNPq, a quem o livro é dedicado; Roberto Leal Lobo e Silva Filho, ex-reitor da USP; Hugo Armelin, ex-pró-reitor de Pesquisa da USP; e José Arthur Giannotti, Professor Emérito da USP.

Em entrevista ao Jornal da USP, Muzy e Drugowich falaram sobre o que os levou a escrever o livro e as análises que a obra traz.

A seguir, um resumo da entrevista:

Por que um livro sobre autonomia universitária nesse momento?

José Drugowich – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Drugowich: A Universidade viveu um momento, na gestão dos professores Marco Zago e Vahan Agopyan, em que correu risco de perder autonomia [os gastos com a folha de pagamento de professores e funcionários excediam a receita da USP]. Conhecíamos a história da conquista da autonomia e estávamos no centro do processo de risco de perdê-la. Autonomia, hoje, é algo que todo mundo olha e acha que é, como o livro diz, 9,57% de “alguma coisa”.

No fundo, ninguém sabe o que é autonomia universitária. Curiosamente, a imprensa tem uma visão muito correta da autonomia, além, é claro, de algumas pessoas na Universidade.

 

Mas qual seria essa visão?

Paulo Muzy – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Muzy: Retomamos a visão medieval de autonomia, porque daí nasce o conceito. Desde então, era necessária a autonomia na universidade para que ela pudesse produzir e fazer a gestão desse bem público que é o conhecimento. A produção de conhecimento precisa de uma gestão autônoma em relação ao Estado, à sociedade e ao mercado. Precisa de condições de liberdade acadêmica, na qual não se pode ser cerceado.

Galileu, por exemplo, foi condenado por estudar as estrelas em vez da realidade social, como queria a Igreja.

Hoje, nossos relógios funcionam porque o Galileu olhou para a estrela, se ele olhasse para um problema social daquela época, não haveria relógio. É muito comum dizerem que a universidade tem que resolver os problemas sociais antes de qualquer coisa, mas ela precisa olhar para a verdade, a ciência. Esse episódio do Galileu deixou bem claro o princípio da autonomia para fazer pesquisa básica, tecnologia e transferência para a sociedade.

Drugowich: No livro, também trazemos muitos dados e informações a respeito da autonomia das universidades estaduais paulistas oriunda do decreto do governador Quércia.

O livro defende a tese de que autonomia universitária não é só ter um orçamento próprio. O que seria a construção dessa autonomia?

Muzy: Na universidade, a autonomia virou um conceito em disputa. É um conceito tão vago e impreciso, que cabe tudo dentro dele. Um dos objetivos do livro é justamente firmar esse conceito e o que advém do decreto. O conceito de autonomia universitária tem duas vertentes importantes, uma é garantir o dinheiro e a outra reza que a universidade e as organizações e unidades do serviço público devem providenciar a adequação da sua gestão para garanti-la.

E isso foi feito até hoje?

Drugowich: Algumas coisas foram feitas, outras foram discutidas, mas não implementadas. Uma coisa importante é lembrar que o decreto da autonomia universitária foi promulgado antes da aprovação da Constituição Estadual de São Paulo, apesar de a Constituição Federal de 1988 já estabelecer a autonomia das universidades. A Constituição Estadual fala genericamente sobre o que significa a autonomia das universidades. Portanto, o decreto tem 30 anos e nunca virou lei.

Muzzi: Tem um ponto interessante no espírito do livro que é importante ressaltar. Ele tem muito de nós, nossa visão como físicos. É experimental, e não ideológico. É um levantamento de informações e as conclusões evidentemente são nossas. Há 30 páginas de bibliografia, pois buscamos fazer um trabalho metodológico.

Quais seriam os passos que deveriam ter sido seguidos, ou ainda devem ser seguidos, para que a autonomia seja exercida não só do ponto de vista econômico?

Muzy: Um exemplo fundamental do que é autonomia universitária ocorreu com a contratação de professores estrangeiros pela USP, no início dos anos 1990. A Constituição Federal de 1988 proibia estrangeiros de ocupar cargos públicos. Era algo absurdo porque qualquer universidade do mundo, considerando a internacionalização da ciência e do conhecimento, depende de ter profissionais de outros países.

Baseado na autonomia universitária, o Conselho Universitário da USP aprovou a contratação de professores estrangeiros e isso gerou uma repercussão jurídica e uma emenda constitucional. O Supremo Tribunal Federal admitiu que a autonomia permitia a contratação de professores estrangeiros. Foram advogados que defenderam o interesse da Universidade. Esse é um exemplo positivo da utilização da autonomia.

Drugowich: Hoje, qualquer professor estrangeiro pode prestar concurso nas universidades públicas, não só na USP. Não há a limitação que havia. Os cargos públicos só podiam ser ocupados por brasileiros natos ou naturalizados. Isso impedia a vinda de pesquisadores, porque o profissional precisava se naturalizar para depois prestar o concurso.

Muzy: Há também exemplos negativos da autonomia universitária, por exemplo, a história do fundo de reserva. A USP tratou o fundo de reserva como uma “sobra de caixa”. Nenhum empreendimento trata recursos como “sobra de caixa”, mas como investimento. É nesse sentido que a Universidade não teve a capacidade de usar a autonomia.

Outro exemplo: antes da autonomia universitária, a Universidade praticava uma política de “pires na mão”, pedir dinheiro ao governador a cada necessidade de aumentar o seu orçamento. Depois da autonomia, ela se restringiu a acompanhar a arrecadação, medindo o que receberia. Isso é um problema. A Universidade não utilizou a autonomia para modificar a sua gestão, como no exemplo dos professores estrangeiros.

Drugowich: Também não usou a autonomia em relação ao teto salarial, cuja modificação foi aprovada ontem [5 de junho]. Desde 2013, a USP adota o corte dos salários para quem recebe acima do salário do governador e isso vem sendo aplicado desconsiderando a autonomia universitária.

Fomos capazes de emendar a Constituição Federal no caso dos professores estrangeiros e também deveríamos ser capazes de dizer que vamos adotar o teto federal. Vamos estar presos a um subsídio do governador, que não é nem salário? Se ele quiser bancar o populista e dizer que seu salário será de R$ 5 mil? Engenheiros e médicos que deixaram de trabalhar no setor privado e se dedicaram à Universidade terão que ganhar isso? A Universidade não pode se curvar a isso.

No livro, vocês falam muito em “poder acadêmico”, o que é isso?

Muzy: Poder acadêmico é um conceito do professor José Arthur Giannotti que, em 1986, escreveu um livro chamado A Universidade em Ritmo de Barbárie. Recomendo-o a todo mundo que queira entender o que é a universidade. É um livro premonitório, dizia que a universidade, por duas razões, estava a caminho de se constituir em uma barbárie. Em primeiro lugar, ela se sindicalizou, se partidarizou, para ser quase um partido político, ou vários partidos políticos. Em segundo lugar, a universidade estava derrotando o poder acadêmico. Giannotti define esse conceito como um conjunto de pessoas e normas baseados no mérito.

Quem continuou essa ideia de Giannotti foi Eunice Durham, que fala que a universidade tornou-se uma comunidade, como se os interesses dos professores, alunos e funcionários representassem o interesse da instituição. A universidade não é uma comunidade, ela é uma organização com uma finalidade, dizia Durham.

A terceira contribuição é a do professor Luiz Eduardo Wanderley, que foi reitor da PUC e fez, em 1987, um estudo sobre o que era autonomia universitária. Ele disse que autonomia é um valor associado a outros valores como, por exemplo, prestação de contas, respeito, avaliação etc.

Drugowich: Ele reconheceu a necessidade da autonomia estar associada a outros valores. Vai muito além de não prestar contas ou não fazer avaliação.

No livro, há alguns exemplos de caminho e o descaminho para a autonomia na USP. Recentemente, ocorreram más escolhas administrativas ou acadêmicas?

Muzy: Principalmente administrativas. Não temos dúvidas de que a USP sempre andou bem em termos acadêmicos. Inclusive porque todo mundo tem a consciência de que precisa melhorar, competir, comunicar em revistas de qualidade.

Do ponto de vista de gestão é que há algumas críticas. Um reitor fez uma série de reajustes salariais – o primeiro ele aprovou no Conselho Universitário, os outros não. De repente tínhamos uma folha de pagamento que havia crescido de uma forma inconsequente.

Quase voltamos àquela situação de antes da autonomia universitária, de pedir ajuda para o governador. No livro, há gráficos, resultantes de pesquisa, que mostram que o decreto da autonomia universitária beneficiou a Universidade. O orçamento em termos reais cresceu 100%. Como a Universidade passou a gastar 125% do que ela recebia? Porque houve problemas de gestão.

Vocês acreditam que a crise financeira pela qual a USP passou é a oportunidade para repensar a autonomia universitária?

Drugowich: A Universidade voltou a discutir coisas que ficaram esquecidas. Agora, há uma legislação aprovada pelo Conselho Universitário que cria uma série de instrumentos de controle que não existiam antes.

Muzy: E o decreto em 1989 já dizia para não gastar mais de 75% da receita com a folha de pagamento. Hoje, a Universidade está discutindo parâmetros de sustentabilidade que já constavam no decreto. Ou seja, esse decreto tem uma atualidade muito grande.

Eu queria reforçar que o livro não é a minha opinião ou a do Drugowich, ele traz a opinião da sociedade, por meio da imprensa, de intelectuais que se manifestaram sobre a autonomia universitária. É muito consistente. Há uma pesquisa bem detalhada e muitas informações sobre a autonomia universitária que não são novidades, mas que precisam ser feitas.

Luiz Serrano e Hérika Dias

 

O lançamento do livro será no dia 18 de junho, das 19 horas às 21h30, com sessão de autógrafos. O endereço da Livraria da Vila é Rua Fradique Coutinho, 915, Pinheiros, São Paulo. O livro está disponível para compra no site da editora. Os autores estão organizando uma série de seminários para divulgar e debater o livro.

 


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