. Foto: Jorge Maruta / USP Imagens
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Conviver com a incerteza da permanência e ter a expectativa da próxima enchente, em determinadas épocas do ano, é uma triste realidade para famílias do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo. “Não bastasse essa situação, as pessoas que lá residem têm suas propriedades em situação irregular”, conta a bióloga Nayara dos Santos Egute. O Jardim Pantanal está localizado numa Área de Proteção Ambiental (APA) junto à várzea do Rio Tietê, com aproximadamente 1 milhão de metros quadrados (m2).
As situações cotidianas e a capacidade adaptativa de alguns moradores em relação às enchentes foram objeto de um estudo de doutorado, empreendido por Nayara, no Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A tese Quando a água sobe : análise da capacidade adaptativa de moradores do Jardim Pantanal expostos às enchentes teve a orientação do professor Arlindo Phillippi Júnior, da FSP. Afinal, quais seriam os fatores determinantes para que essas pessoas desenvolvessem uma “capacidade adaptativa” para conviver sob as águas? “No final de 2009 e início de 2010, o bairro teve sua pior enchente”, conta a bióloga. “Foi quando a maioria dos moradores teve de conviver por cerca de três meses com suas casas invadidas pelas águas”, lembra Nayara.
Os episódios aguçaram na pesquisadora a curiosidade em saber como era, para aquelas pessoas, conviver com esse drama sob diversos aspectos em relação às suas capacidades adaptativas: desde como lidavam com o risco iminente de novas enchentes até as medidas estruturais realizadas nas casas para combater a invasão das águas, entre outros.
Em 2013, entre junho e agosto, Nayara fez visitas semanais ao bairro. Com apoio de uma ONG que atua na região, a bióloga passou a acompanhar alguns moradores para conhecer suas motivações para continuar no bairro, mesmo nas condições mais adversas. No ano de 2015, Nayara retornou ao Jardim Pantanal para analisar que tipos de respostas as pessoas tinham, após mais um episódio de enchente. Ao todo, a pesquisadora obteve depoimentos de 35 moradores.
Alguns elevaram um “segundo andar” em suas casas ou ergueram comportas para evitar a invasão da água. Em outras residências, como conta Nayara, era comum ver cômodos sem móveis. “Quartos sem camas, cozinhas e salas com mobiliários mínimos. Em outras, alguns pisos elevados”, descreve.
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No final de 2009 e início de 2010, o bairro teve sua pior enchente…Foi quando a maioria dos moradores teve de conviver por cerca de três meses com suas casas invadidas pelas águas.
Nayara dos Santos Egute,
bióloga pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
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Sentimento de posse
Mesmo com os prejuízos causados pelas cheias, Nayara conta que os moradores continuavam expostos a novas “tragédias” e a cada evento encontravam-se mais vulneráveis. Uma das motivações para continuar no bairro é o sentimento de propriedade em relação às suas residências. “Mesmo que as casas não tenham suas documentações devidamente regularizadas, os moradores sentem-se donos, já que investiram em materiais para a construção das moradias”, conta Nayara.
Apesar de toda a área ser de “proteção ambiental”, a pesquisadora narra que há muitos terrenos que foram comercializados por moradores locais. Existem, segundo ela, os chamados “contratos de gaveta”, um documento simples de compra e venda assinado pelas partes. “Para muitos, a solução imediata para estes moradores seria abandonar o bairro. Mas eles resistem por não terem para onde ir, devido a condições financeiras precárias ou até mesmo pelo sentimento de posse”, afirma a pesquisadora.
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Solidariedade coletiva
Durante o período de cerca de três meses sob as águas, alguns moradores tiveram de abandonar, temporariamente, suas casas. Foi quando ficou evidente o sentimento de solidariedade entre os moradores. Alguns passaram a viver isolados em suas residências. “Em geral, os homens permaneciam nas casas. As mulheres e crianças iam para casa de parentes, em outros locais, separando a família”, conta a pesquisadora. A medida, segundo ela, evitava saques e roubos, que chegaram a ocorrer. “Alguns comerciantes locais perderam mercadorias e matérias-primas”, lembra.
Nos períodos do caos, os moradores receberam cestas básicas e roupas vindas da Defesa Civil, de igrejas, ONGs e demais órgãos que atuam na região. “Foram cerca de três meses sem água potável, além da incidência de doenças como a leptospirose e de pele”, conta Nayara.
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“Com os pés na água”
Assim muitas pessoas passaram noites e dias, entre o período de Natal e Ano Novo, durante a grande enchente ocorrida naquele período, no final de 2009 e início de 2010. “Em dezembro de 2009 as águas chegaram à altura de 1,10 m e 1,20 m dentro e fora das casas. Assim, passávamos dias e noites com os pés na água”, conta a enfermeira Ana Aparecida Silveira. Moradora da região há quase 30 anos, e há 16 no Jardim Pantanal, ela se recorda ainda de outra grande enchente no ano de 1986. “Foi quase uma semana inteira de chuva”, conta.
Forte e determinada, Ana Pantanal, como é conhecida no bairro, é uma das pessoas mais ativas em questões de defesa dos direitos dos moradores do Jardim Pantanal. Mas suas lembranças das enchentes a entristecem. “Foram 63 dias com água nas casas e muitos casos de leptospirose. Houve até a morte de uma criança que sequer foi notificada”, conta a enfermeira.
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Em dezembro de 2009 as águas chegaram à altura de 1,10 m e 1,20 m dentro e fora das casas. Assim, passávamos dias e noites com os pés na água.
Ana Aparecida Silveira,
moradora do Jd. Pantanal há quase 30 anos.
Como boa parte dos moradores, após a enchente, Ana empreendeu algumas melhorias em sua casa no sentido de evitar as águas, realizando um aterramento na frente de sua casa. “A ideia era que a água fosse impedida de entrar”, conta. Além disso, ela também relembra os momentos de solidariedade. “Eu sempre participei e participo de movimentos solidários aqui no bairro, principalmente na área da saúde. Faço parte do Conselho Gestor do posto de saúde aqui do bairro”, conta orgulhosa.
Com seu aspecto calmo e tranquilo, o aposentado Rosalvo José dos Santos reside no Jardim Pantanal “há mais ou menos 21 anos”, como ele diz. “Naquela manhã, acho que 6 ou 7 de janeiro de 2010, quando acordei umas 4 horas da manhã estava tudo seco”, lembra. “Quando deu umas 5 e 20 a água começou a invadir minha casa. Em 20 minutos já chegou a 1 metro.”
Depois disso, Seu Rosalvo, como é conhecido no bairro, aterrou a casa na parte de baixo. E como ele havia construído cômodos na parte de cima, foi onde viveram durante todo o período da enchente. “Passamos todos os móveis para a parte de cima, e lá ficamos”, conta.
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Quando deu umas 5 e 20 a água começou a invadir minha casa. Em 20 minutos já chegou a 1 metro.
Rosalvo José dos Santos,
morador do Jd. Pantanal há 21 anos.
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As precariedades
As deficiências do bairro em quase todos os aspectos estão à vista para qualquer pessoa que ande por lá. Localizado junto à várzea do Rio Tietê, o Jardim Pantanal faz limite com a cidade de Guarulhos. Em uma de suas ruas, na Cachoeira de Itaguassava, há um córrego de águas negras por onde escoa boa parte do esgoto, a céu aberto. Em alguns pontos do curso d´água, mangueiras e canos atravessados de um lado a outro, com as ligações de água. “Hoje temos aqui rede de água e luz”, afirma o Seu Rosalvo.
Também é comum ver em alguns pontos acúmulo de lixo e entulhos. Mas nesse ambiente pode se ver também muita gente trabalhando em suas casas, construindo ou reformando.
Apesar de não ser um morador do Jardim Pantanal, o agente de políticas públicas Oswaldo Ribeiro foi bastante atuante naquele período das grandes enchentes, além de ser uma das fontes para a pesquisa de Nayara. Ele ressalta a capacidade de organização das famílias locais. “É impressionante a solidariedade que existe nesses momentos e a força que aquelas famílias demonstraram”, observa.
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É impressionante a solidariedade que existe nesses momentos e a força que aquelas famílias demonstraram.
Oswaldo Ribeiro,
agente de políticas públicas.
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Represamento
Para Ribeiro, a grande enchente na verdade foi uma espécie de “represamento”. E ele justifica dizendo que as águas foram para o bairro quando as comportas da represa do Sistema Alto Tietê foram abertas e, ao mesmo tempo, as comportas do sistema do mesmo rio, no bairro da Penha, foram fechadas. “As águas foram para o Jardim Pantanal por esse motivo”, afirma.
Seu Rosalvo e a enfermeira Ana Aparecida também reforçam que isso de fato aconteceu.
“Naqueles dias de janeiro, fomos à sede da Prefeitura para cobrar soluções. No dia seguinte, das 6 horas da manhã às 5 da tarde, a água secou”, recorda-se Seu Rosalvo. Para Ana, “a medida foi uma tentativa de tirar as pessoas daqui na época.”
Oswaldo também confirma que houve casos de leptospirose e até morte na época. Naquele período, o agente de políticas públicas atuou no bairro com respaldo da Organização Não-Governamental Ação Cultural Afro-Leste Organizada (ACALeO), da qual é um dos fundadores.
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Excesso de água
Para o atual prefeito regional de São Miguel Paulista, Edson Marques Pereira, o que ocorreu naquele período (final de 2009 e início de 2010) foi um “excesso de água generalizado, com as fortes chuvas”. Mesmo estando à frente da Prefeitura Regional há apenas três meses, ele se diz conhecedor dos problemas daquela área. “Conheço bem a região e na época daquela grande enchente eu estava na Assembleia Legislativa como assessor do deputado estadual Samuel Moreira, que foi prefeito regional aqui entre os anos de 2005 e 2008”, conta.
“Abrir e fechar as comportas do Alto Tietê e do bairro da Penha são operações normais de controle. Não podemos afirmar que isso tenha causado as cheias naquele momento. Aliás, nada é feito sem a devida supervisão e autorização das autoridades”, afirma. De acordo com o prefeito regional, segundo dados de quase dois anos atrás, a área do Jardim Pantanal tem população estimada em 21 mil moradores. “Destes, aproximadamente 8 mil residem em áreas localizadas a cerca de 50 metros do leito do rio. Então, nos períodos de muitas chuvas, as enchentes acontecem, infelizmente”, lamenta.
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Abrir e fechar as comportas do Alto Tietê e do bairro da Penha são operações normais de controle. Não podemos afirmar que isso tenha causado as cheias naquele momento. Aliás, nada é feito sem a devida supervisão e autorização das autoridades.
Edson Marques Pereira,
prefeito regional de São Miguel Paulista.
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Nestes três meses à frente da Prefeitura Regional de São Miguel Paulista, Marques Pereira diz que já deu início a tratativas junto a órgãos como a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e Ministério das Cidades, no sentido de viabilizar alternativas habitacionais àqueles moradores. Uma das saídas, segundo ele, é a construção de conjuntos habitacionais para que os moradores sejam transferidos daquela área de proteção. “Mas tudo ainda é muito prematuro”, avisa. Ao mesmo tempo, como ele diz, há estudos para a construção de mais piscinões na região. “Além do já existente no Jardim Romano, há a necessidade de outros dois. Mas isso implica desapropriações”, avalia.
Considerando o problema de difícil solução, Marques Pereira ressalta que a Prefeitura Regional mantém alguns trabalhos de manutenção no bairro, como abertura de ruas, limpeza e até mesmo de assistência social em casos de necessidade. “A intenção é sempre no sentido de proporcionar maior qualidade de vida aos moradores.”
Mais informações com Nayara dos Santos Egute: e-mail nayara.egute@yahoo.com.br
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Edição de arte: Caio de Benedetto – Vídeo: Thales Figueiredo, Lucas Pecoraro, Paula Serra – Fotos dos entrevistados: Lucas Pecoraro, Marcos Santos, Paula Serra
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