Tese de legítima defesa da honra, julgada inconstitucional, barra misoginia na Justiça brasileira

De acordo com Ana Elisa Bechara, a proibição do uso direto e, principalmente, indireto da tese impacta positivamente o combate à desigualdade de gênero em casos de feminicídio

 23/08/2023 - Publicado há 8 meses

A tese da legítima defesa da honra, historicamente utilizada na defesa do homem em casos de feminicídio, foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) - Imagem: Freepik

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A tese da legítima defesa da honra, historicamente utilizada na defesa do homem em casos de feminicídio, foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Com bases machistas e patriarcais que ferem o princípio da dignidade humana, da igualdade de gênero e da proteção à vida, o uso direto e indireto da argumentação foi proibido tanto na fase de investigação quanto em tribunais.

Em voto contrário unânime, o julgamento foi finalizado no dia 1º de agosto de 2023. “A tese da legítima defesa da honra consiste em dizer que é permitido pelo Direito que um homem, como forma de defesa, mate uma mulher cujas ações de alguma forma desonre sua imagem”, explica Ana Elisa Bechara, professora e vice-diretora da Faculdade de Direito da USP. 

Machismo

A argumentação tenta se aproximar da justificativa teórica de “legítima defesa” que, de acordo com a vice-diretora, diz respeito a uma justificação excepcional do comportamento humano criminoso. Nesse sentido, condutas ilegais, em tese, são autorizadas pelo Direito, uma vez que se trata de casos específicos em que o indivíduo precisa se defender de uma injusta agressão atual ou iminente. 

Ana Elisa reconhece a necessidade do dispositivo jurídico, na medida em que o Estado não é onipresente para cumprir com todas as mediações dos conflitos sociais. No entanto, mesmo dentro do instituto de “legítima defesa”, ainda há uma grande preocupação com a proporcionalidade da reação ao episódio de injusta agressão.

Ana Elisa Bechara - Foto: Reprodução/FD

Ana Elisa Bechara - Foto: Reprodução/FD

A problemática central da tese de legítima defesa da honra está na diferenciação entre os casos em que seu uso é permitido e quando não o é. “A argumentação é usada no sentido muito específico relacionado à honra do homem, em tese, ofendida por um comportamento de uma mulher”, ressalta a professora. 

Além disso, Ana Elisa também aponta que a defesa da honra é apenas bem-recebida quando teoricamente o homem tem sua honra violada por uma mulher, em caso contrário, as chances de vitória num julgamento a partir da argumentação são baixas. Tais episódios, então, apresentam um viés machista que distancia a tese do instituto garantido pelo Direito. 

Perpetuação histórica

A ideia central da tese caminha juntamente com a história brasileira e remonta ao período colonial, com influência do Direito português. A professora esclarece que, sem uma legislação própria, o Brasil se orientava por meio das chamadas Ordenações Filipinas, o Direito de Portugal ordenado no País. 

“No livro quinto das Ordenações, que seria o Código Penal, está claramente previsto pelo legislador português que o homem que encontre sua mulher em adultério pode licitamente matar tanto a ela quanto ao adúltero”, resgata a vice-diretora. Ela ainda chama atenção para os traços de desigualdade social que se convergiam com a misoginia da medida, visto que o assassinato do amante só não era permitido quando este tivesse uma condição social maior que o cônjuge traído. 

A tese se perpetuou até o período imperial e foi banida apenas em 1830. Apesar dos mais de 150 anos de separação entre sua proibição e o cenário atual, Ana Elisa Bechara afirma que essa argumentação machista marcou a Justiça brasileira mesmo sem uma previsão legal para a medida. 

Caso Ângela Diniz

Protestos após o assassinato de Ângela Diniz - Foto: Reprodução/YouTube/Rádio e TV Justiça

Um exemplo de grande e inédita repercussão acerca da legítima defesa da honra foi o caso de Ângela Diniz, assassinada após tentar terminar o relacionamento com o namorado, Doca Street, que disparou quatro vezes contra ela. A defesa realizada pelo advogado Evandro Lins e Silva alegou “homicídio passional praticado em legítima defesa da honra com excesso culposo”.

“Esse não foi o primeiro caso nem o único caso, mas ficou muito famoso, porque surtiu uma reação inédita dos movimentos feministas que, naquele momento dos anos 1970 e 1980, começam a ganhar uma articulação importante”, destaca a vice-diretora. Com a organização do movimento, a emblemática frase “Quem ama não mata“ evidenciou o descontentamento de parte das mulheres diante do recurso legal frequentemente utilizado em crimes como esse.

Aplicabilidade

Ana Elisa explica que a proibição do uso direto e, principalmente, indireto da tese impacta positivamente no combate à desigualdade de gênero em casos de feminicídio, uma vez que tenta impedir discurso de culpabilização da vítima mulher, a partir de um duplo julgamento: do réu e da vítima. “Começa-se a perguntar como é que ela estava se comportando? Ela se vestia de forma provocativa? Ela era uma boa mãe? Há uma colocação, perante o tribunal do júri, de uma série de informações sobre a vida da vítima no sentido de desmerecer e quase de apontar sua própria responsabilidade na morte que sofreu”, analisa a professora. 

Apesar do cenário otimista ao tentar barrar o machismo e misoginia na Justiça brasileira, a vice-diretora afirma que outras medidas são necessárias para auxiliar na inconstitucionalidade da tese. O avanço da conscientização de gênero pela população em geral consiste em uma delas, uma vez que a dinâmica do julgamento de casos de feminicídio é feita a partir do tribunal do júri, composto de sete pessoas juridicamente leigas.

*Estagiária sob supervisão de Paulo Capuzzo

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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