Sentir-se parte de algum grupo, uma nação, um time esportivo ou uma família é ideal para todos os seres humanos. Fazer parte de algum grupo ou pertencer a algum lugar nos dá um sentimento de importância, de fazer parte de algo que é maior e mais importante que nós. Não se sentir parte de algo, por outro lado, pode causar efeitos muito negativos na saúde física e mental e no bem-estar de uma pessoa. Mas o que é o sentimento de pertencimento?
“Pertencimento é aquela percepção de alguém fazer parte de uma comunidade, de uma família, de um grupo, de uma nação. Ele está muito ligado ao reconhecimento e a como um cidadão tem respeitadas a sua dignidade, a sua cultura, e as suas diferenças”, explica Miriam Debieux Rosa, professora titular do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.
Segundo a professora, a luta por reconhecimento é estudada por vários autores, como Hegel e Axel Honneth, e opera por mecanismos de proteção e à sua consideração como um sujeito de direitos, ao acesso aos bens materiais e culturais de uma sociedade, à saúde, moradia, educação, proteção jurídica, entre outros. “O pertencimento supõe também participação, o que inclui ter lugar e voz nos processos de escolha, de elucidação dos conflitos, ou seja na construção do grupo podendo contribuir, dar a sua parte e a sua cara no projeto , no trabalho, nos estudos”, diz.
O que é se sentir parte de algo?
A hipótese do pertencimento, proposta pelos psicólogos Roy F. Baumeister e Mark R. Leary, em 1995, sugere que o desejo por ter relações interpessoais é uma motivação fundamentalmente humana. Segundo os pesquisadores, os seres humanos têm necessidade de ter e manter um relacionamento duradouro, estável e significativo com um grupo de pessoas. Essas relações são importantes porque moldam o comportamento, pensamento e as emoções de uma pessoa, trazem vantagens evolutivas e beneficiam a sobrevivência e a reprodução.
Interessante é que estar rodeado de pessoas não garante o sentimento de pertencimento a um determinado indivíduo, que pode estar a todo momento ao lado e convivendo com seus semelhantes, mas não se identificar com nenhum grupo ou nunca se sentir realmente parte de algum lugar. Isso porque pertencer tem a ver com se sentir acolhido e entendido.
Estar em conformidade com um grupo pode levar a mudanças no comportamento, nas crenças e atitudes. Gostos em comum podem ser determinantes na hora de escolher um grupo para fazer parte. Além disso, muitos de nós começamos a agir, falar e se expressar como pessoas daquele grupo para termos certeza de que fazemos parte dele.
“A característica humana justamente está nessa necessidade absoluta de viver em relação com o outro, de viver vinculado ao outro. Essa experiência fundamental do bebê humano, que só sobrevive porque alguém se encarregou de cuidar dele, de dar amor e suprir suas necessidades. Então, essas experiências são fundantes do sentido da vida para o sujeito e da própria capacidade humana de reproduzir essa possibilidade de acolhimento com outras pessoas que estão em situações que o vulnerabilizam. Mesmo o adulto tem essa necessidade de reconhecimento e de ser acolhido para exercer qualquer atividade”, explica a psicóloga.
A comparação também é um aspecto desse comportamento. Sempre estamos nos comparando para termos certeza de que pertencemos ao grupo que escolhemos e se agimos de acordo. Porém, a busca por pertencer a algum lugar pode levar pessoas a fazerem coisas erradas e agirem de forma desumanizante, mesmo sem perceber. A professora explica que isso acontece por conta de uma desumanização do próprio sujeito, o que acarreta processos de assimilação, que podem levar a uma submissão extrema.
“Há processos de inclusão em grupos fechados que condicionam o pertencimento a uma adesão acrítica e sem pensamento possível fora dos padrões desse grupo, ou seja, ele se autoenaltece como representando o bem supremo e os outros grupos, ou outros modos de vida, como representando o mal. São grupos que têm uma sensação de superioridade em relação aos outros; nesse sentido, a tônica desses grupos é de excluir os outros, desqualificar ou até mesmo desconsiderar a humanidade do outro”, lembra Miriam. Um exemplo disso é a adesão de pessoas a grupos ideologicamente torpes, como o nazismo e o fascismo, ou a grupos que se engajam em ações criminosas e impensadas.
Sentir-se pertencendo a algo também está relacionado à identidade social, necessidade de aprovação e reconhecimento dos outros, que são pré-requisitos para formar e manter vínculos sociais, o que leva à aceitação, atenção e suporte emocional. “Esse sentimento tem, sim, relação com a necessidade de aceitação e aprovação, mas no sentido de que ele tenha o reconhecimento de que pertença a um grupo. Então, esse reconhecimento se faz através dos mecanismos de proteção e de participação, no sentido de não se sentir vulnerável aos perigos do isolamento”, explica a professora. “Ele está relacionado ao acolhimento das suas necessidades e a sua consideração como um sujeito de direitos, ou seja, de acesso aos bens materiais e culturais de uma sociedade, à saúde, moradia, educação, proteção jurídica, entre outros.”
Saúde e bem-estar
O sentimento de pertencimento também ajuda na prevenção de alguns problemas de saúde mental, como a depressão, a ansiedade, pensamentos suicidas e o sentimento de estar sozinho. A falta desse sentimento ocasiona baixo suporte social e aumento dos casos de depressão e pensamentos suicidas.
Um dos sintomas da depressão, mais do que o sentimento de solidão, é o sentimento de estar deslocado e não pertencer a nenhum lugar. Isso impacta no círculo social e no sistema de suporte social, o que pode levar a uma piora do quadro clínico. Um estudo encontrou, inclusive, que o isolamento social causa no corpo o mesmo tanto de desejo no cérebro do que a fome. Só que, em vez de comida, desejamos ter contato social.
“Não participar de um grupo, não participar da sociedade, não participar das instituições promove várias modalidades de silenciamento. Quando as pessoas são desqualificadas por fatores econômicos, religiosos, raciais e de gênero, esse lugar acaba naturalizando um lugar de subalternidade e de violências, de forma que vão aparecer angústias. É um ambiente que promove um deslocamento, que pode até mudar o valor que o sujeito dá à própria vida”, explica Miriam.
Isso explica porque o rendimento profissional cai quando não há um sentimento de pertencimento na empresa ou entre as pessoas do grupo e porque certas pessoas não conseguem se adaptar a novos países e rotinas. “Esse sujeito se sente desamparado, e tem uma dificuldade de construir um sentido do presente, de produzir nesse presente e prospectar um futuro. O sociólogo Robert Castel chama isso de desfiliação, quando esse sentimento é tão intenso que o sujeito não se sente inscrito nas estruturas portadoras de sentido naquela sociedade. Então, ele gera vulnerabilidade tanto no mercado de trabalho como nas relações com os outros daquele grupo. O que era uma verdade social se torna uma própria vulnerabilidade do sujeito”, diz a professora.
Além do declínio do bem-estar, estar privado do sentimento de pertencimento acarreta problemas de saúde e piora as relações sociais de comunicação e convívio. A mudança de humor, comportamento e pensamento acabam condicionados à falta de um grupo de suporte emocional, o que leva a um desenraizamento do sujeito.
atualização em 13/4 às 11h53
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