Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo

Especialistas relacionam a prisão de mulheres com questões de raça, condição socioeconômica e posição geográfica específicas

 07/08/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 08/08/2023 às 13:54
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O crescimento de prisões de femininas está muito mais ligado à questão das drogas – Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

 

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Uma pesquisa realizada pelo World Female Imprisonment List, no final do ano passado, revelou que o Brasil apresenta a terceira maior população carcerária feminina do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Com cerca de 40 mil mulheres encarceradas, nos últimos anos o País apresentou um crescimento exponencial desses números, quadruplicando essa população em apenas 20 anos. Cerca de 45% dessas mulheres se encontram em prisão preventiva, segundo levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Ana Elisa Bechara – Foto: Reprodução FD

Ana Elisa Bechara, professora e vice-diretora da Faculdade de Direito (FD) da USP, explica que o aumento de encarceramentos é global, observando-se também uma explosão das prisões masculinas. Contudo, no caso dos encarceramentos femininos, existe a presença de um fenômeno marcante: o crescimento do aprisionamento por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Assim, enquanto o crescimento de prisões de homens apresenta associação direta com crimes patrimoniais, violentos e sexuais, as femininas estão muito mais ligadas à questão das drogas — o que não significa que o cárcere masculino não se relacione com esse tema.

“Quando a gente fala sobre o tráfico de drogas, não é que as mulheres são líderes desse tipo de criminalidade. A liderança é masculina, mas essa liderança normalmente tem uma companheira que acaba tomando conta quando este homem está preso ou quando ele é promovido. Então, as mulheres assumem essas funções dentro de uma estrutura mais patriarcal e acabam sendo mais encarceradas”, analisa a professora. 

Motivo para aumento de prisões

Luiz Veras – Foto: Arquivo Pessoal

Existem diferentes motivos que explicam esse aumento, sendo essencial a compreensão de que os problemas associados ao sistema prisional nacional são multifatoriais. A atual Lei de Drogas (11.323), instituída em 2006, teve uma contribuição direta na questão. “Em 2006, entrou em vigor a nova lei de drogas que basicamente instituiu uma guerra contra as pessoas. Essa guerra afetou desproporcionalmente as mulheres, que passaram a ser alvos frequentes de prisões. Elas foram colocadas na linha de frente pelo tráfico, seja como mulas, dependentes químicas ou pessoas em situação de vulnerabilidade”, observa Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras, mestre e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

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A mão invisível do mercado do crime

A legislação em questão ilustra dois tipos claros de penalização relacionados ao mercado de drogas: uma para aqueles que são consumidores e o outra para aqueles que traficam. “Usar droga não é crime no Brasil, mas é crime portar droga para consumo pessoal. Em boa parte dos países do mundo se criminaliza o tráfico, mas não o porte para consumo pessoal, porque quando você criminaliza este, você está querendo combater o tráfico pegando quem usa a droga que, na verdade, é a vítima disso”, argumenta Ana Elisa. 

Atualmente, não há pena de prisão para os portadores de droga para consumo próprio, diferentemente daqueles que são presos por tráfico de drogas e que lidam com um regime penal duro imposto pelo Estado. “As duas situações apresentam consequências bem distintas para o Direito. Assim, se eu tenho essa diferença dramática de consequência, eu deveria ter muito cuidado. Contudo, a atual legislação prevê essa diferenciação de uma forma subjetiva”, acrescenta a especialista. Ou seja, a distinção entre as duas situações deveria ser feita de maneira objetiva, uma vez que, da forma como a lei é apresentada atualmente, abrem-se margens para um claro processo de seletividade.

Dessa forma, é possível notar que a grande maioria das mulheres presas apresentam raça, condição socioeconômica e posição geográfica específicas. “Em matéria penal, quanto mais clara e fechada for a lei mais segura ela vai ser para todos nós. Toda vez que a gente dá muita liberdade, ela normalmente é utilizada para gerar mais prisão e não mais liberdade. Isso acontece porque a gente está falando de um poder do Estado que é muito forte, que é o poder de punir. E um poder sempre tende a se expandir e nunca a se autolimitar”, reflete Ana Elisa.

A criação de parâmetros que determinem de maneira clara a diferenciação entre o porte e o tráfico de drogas é, portanto, essencial, sendo também importante a presença de filtros que auxiliem na constitucionalidade da lei. Considerando ainda o permanecimento da seletividade presente no sistema carcerário nacional, Luiz Veras avalia que “mulheres frequentemente encaram maiores obstáculos no acesso à educação, emprego e saúde, resultando em menores oportunidades e maior disposição ao envolvimento em atividades criminosas”. Dessa forma, a questão da violência doméstica e de gênero contribuem significativamente para esse preocupante cenário. 

Condições estruturais

O especialista reflete ainda que a elevação do Brasil ao posto de terceiro país com a maior população carcerária do mundo apresenta significativas implicações tanto para as mulheres encarceradas como para suas famílias e comunidades. Nota-se, dessa forma, a degradação das condições de encarceramento, da saúde e do bem-estar, o impacto nas famílias e nas crianças e a feminização da pobreza. 

“Uma vez que as mulheres podem ser a principal fonte de sustento de suas famílias, quando elas são presas, a família pode enfrentar dificuldades financeiras adicionais”, comenta Veras. O pesquisador explica que em muitos casos a mulher acaba assumindo a responsabilidade pela posse de drogas como forma de proteção de seus companheiros. 

Outro aspecto que está sempre presente nesse debate são as condições estruturais do sistema prisional nacional, que é historicamente marcado por condições precárias que parecem não considerar a necessidade de garantir a manutenção de direitos humanos básicos. “Há uma evidente superlotação, condições precárias de saúde, falta de programas de reabilitação e reinserção, como a oferta de programas educacionais, de trabalho e de reabilitação, além da falta de atendimento às necessidades específicas das mulheres”, ilustra Veras. 

Além disso, grande parte das mulheres não recebem visitas após serem encarceradas, marcante diferença entre o encarceramento feminino e masculino. “A mulher presa é vista como um monstro na sociedade, ela foge muito do estereótipo feminino”, comenta Ana Elisa. Dessa forma, elas não recebem nem mesmo os “jumbos”, itens que os encarcerados costumam receber de seus familiares. 

A professora destaca ainda que o sistema prisional tem condições de ter um bom funcionamento, mas não atua corretamente porque não apresenta esse desejo. “Se considera positivo que não tenha água quente para tomar banho, que a comida não tenha boas condições, que tenha rato passando pelos lugares, que as pessoas não tenham atendimento de saúde, como se isso fizesse parte da pena”, avalia.

Esse cenário apresenta também relação direta com a formação de facções criminosas, uma vez que grande parte dos indivíduos se associa a essas organizações para ter acesso a itens e condições que deveriam ser fornecidas pelo próprio Estado. Contudo, quando este se torna ausente, meios alternativos — que muitas vezes não se apresentam de forma constitucional — passam a surgir. 

Futuro

Pensar em soluções para os problemas que envolvem esse debate não é simples, uma vez que a questão apresenta-se de maneira recorrente e necessita de ações de diferentes áreas da administração pública. Ana Elisa Bechara verifica que existem dois pontos importantes na atuação governamental para um avanço da questão: o primeiro concentra-se no problema da seletividade — questão identificada há muito tempo dentro do Direito Penal — e, com isso, o estabelecimento de leis mais rígidas para o fechamento de certas condutas é um princípio básico que deve ser estabelecido.  

O segundo concentra-se em trabalhar e sensibilizar os atores do sistema de justiça criminal. “Isso muda muito com a Lei de Cotas e com a cara diferente que as universidades passam a ter […] Esses alunos que estão tendo uma educação de excelência são os profissionais do Direito amanhã, então a chance de eu ter juízes e juízas negros e negras, que vieram da periferia, que nasceram em uma comunidade é muito maior. Isso é crescente e me dá muito otimismo”, observa Ana Elisa. Com isso, os atores passam a trabalhar nesses ambientes tendo como base e referência a realidade da maior parte da população nacional.

Luiz Veras acrescenta também que é necessário “considerar questões de gênero e raça nas políticas de justiça criminal para garantir que ações afirmativas e programas específicos sejam implementados para atender às necessidades das mulheres negras e de minorias étnicas, que geralmente estão super-representadas na população carcerária feminina”. Para o pesquisador, é de suma importância implementar políticas que garantam o acesso das mulheres a cuidados pré-natais adequados e que assegurem a permanência das mães com seus filhos.

Estigmatização

Por fim, para além das diferentes complexidades que cercam o tema, a estigmatização da mulher presa merece destaque na discussão desse tema. Veras explica que é possível e necessário combater esse problema, já que, na maioria dos casos, mesmo após o cumprimento de suas penas, as mulheres continuam lutando por sua reinserção em diferentes espaços. 

O pesquisador aponta que para lutar contra esse cenário é importante a promoção de campanhas de educação e conscientização pública para desmistificar os estereótipos associados às pessoas encarceradas. “Dar espaço para que as histórias e experiências individuais das pessoas encarceradas sejam compartilhadas, destacando sua humanidade e as dificuldades que enfrentaram ao longo da vida. Isso pode ajudar a reduzir a visão estereotipada e compreender as circunstâncias que as levaram ao envolvimento com o crime.”

Para Veras, a constante promoção do debate público sobre o tema também faz-se importante para que a invisibilidade histórica construída acerca do tema possa caminhar em busca de uma efetiva melhoria, sendo interessante a inclusão de políticas de prevenção ao crime e alternativas ao encarceramento. 

* Estagiária sob orientação de Marcia Avanza 


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