Capa do livro que será tema de debate on-line no dia 17, segunda-feira, às 18 horas - Fotomontagem: Jornal da USP/ Imagens: Kinoruss e Freepik

Livro traz análises sobre a guerra na Ucrânia em sua complexidade

Obra será debatida no dia 17, às 18 horas, em evento on-line promovido pelo Laboratório de Estudos da Ásia da USP

 14/04/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Luiz Prado

Arte: Gabriela Varão

Prestes a completar 14 meses, no próximo dia 24, a invasão russa ao território ucraniano colocou no tabuleiro internacional antigos terrores e novos medos: o retorno da ameaça nuclear, o drama dos deslocados de guerra, crise no abastecimento de gás na Europa, a sombra do neoczarismo de Moscou e o aumento global da inflação.

Do périplo do presidente ucraniano Volodymir Zelensky pelas nações ocidentais em busca de apoio internacional ao aumento das fileiras da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), com a entrada da Finlândia e o namoro com a Suécia, passando por visitas rápidas de Joe Biden a Kiev e a onda de boicote econômico, diplomático e cultural a tudo que cheirasse a russo, passamos a conviver e a nos acostumar com o conflito.

Publicado em novembro do ano passado, inaugurando os debates a respeito do conflito, o livro Ensaios sobre a Guerra Rússia Ucrânia 2022 será tema de debate on-line no dia 17, segunda-feira, às 18 horas, com a participação dos colaboradores da obra. O evento é organizado pelo Laboratório de Estudos da Ásia (LEA) do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, no dia 17 de abril, às 18 horas, com a participação dos colaboradores da obra.

“Com o choque inicial da guerra, que dividiu os estudiosos sobre a Rússia, os organizadores do volume, Neide Jallageas e Bruno Gomide, tiveram a ideia de fazer esse livro, chamando especialistas que tivessem alguma inquietação com o que está acontecendo”, conta o professor Angelo Segrillo, um dos coordenadores do LEA.

Angelo Segrillo - Foto: Francisco Emolo/Jornal da USP
Angelo Segrillo - Foto: Francisco Emolo/Jornal da USP

Publicação acadêmica, o volume procura o rigor nas análises e comentários, aliado a uma abordagem multidisciplinar, que transita entre história, sociologia, linguística e artes. Isso não impede um tom claramente favorável ao lado ucraniano do conflito, que passa por avaliações criteriosas dos discursos, motivações e ações de Vladimir Putin, pesando o que há de válido ou não em seus passos.

É o caso do artigo de Svetlana Ruseishvili, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Vinda de uma família russófona da Geórgia que migrou para Kiev fugindo da instabilidade política, econômica e social que tomava conta do país nos anos 1990, a pesquisadora condena a tentativa de Putin de deslegitimar os ucranianos como um povo com direito à autodeterminação.

A partir da obra de Lênin, de Rosa Luxemburgo e de pensadores decoloniais contemporâneos, Svetlana propõe uma reflexão sobre nacionalismo e solidariedade internacional como elementos contraditórios na busca de emancipação dos povos oprimidos, como é o caso da Ucrânia.

“O raciocínio de Putin é evidente: a Ucrânia como um Estado-nação não tem legitimidade, os ucranianos não podem existir sem a Rússia e, se eles quiserem uma dessovietização, têm que entendê-la como devolução de partes de seus territórios para os seus relativos ‘proprietários históricos’”, escreve a pesquisadora, referindo-se ao discurso do presidente russo proferido às vésperas do início da invasão.

Svetlana ainda assinala que, para Putin, uma das motivações da guerra passaria pela reparação histórica do que o estadista considera uma injustiça geopolítica cometida contra a Rússia, em virtude da própria existência de uma Ucrânia independente. Uma postura que revela as feridas abertas do colonialismo. “Continuamos precisando entender e defender o princípio da autodeterminação dos povos e o papel da nação e de nacionalismos na ordem social e política contemporânea.”

Svetlana Ruseishvili - Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP
Svetlana Ruseishvili - Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP

A questão da legitimidade do Estado ucraniano também é debatida pelo professor Henrique Carneiro, do Departamento de História da FFLCH. O docente retoma o papel de Lênin na garantia da autonomia ucraniana na União Soviética e traça um panorama das relações conturbadas com a Rússia ao longo da história.

Conforme explica Carneiro em seu artigo, a Ucrânia sofreu uma primeira tentativa de “russificação” no século 19, com a proibição de sua língua. Depois, nos anos 1930, quando a autodeterminação proposta por Lênin já havia virado fumaça, viu sua população expropriada por conta da coletivização forçada proposta por Stálin. No auge do regime soviético, o país se tornou um centro industrial mineiro, siderúrgico e metalúrgico fundamental para a sustentação econômica da URSS. Décadas depois, já nos últimos suspiros da União Soviética, o país viveu o desastre nuclear de Chernobyl, a pior contaminação nuclear acidental da história. E em 2014 foi alvo da invasão militar russa da Crimeia, península que havia sido cedida à Ucrânia em 1954 por Nikita Kruschev.

“Hoje, a Ucrânia é invadida numa guerra brutal de agressão, com a finalidade de anexá-la em partes ou na totalidade ao Estado russo neoczarista de Putin. A resistência ucraniana em busca de seu direito de existência não começou no século 21”, escreve o professor. “Ao condenar Lênin e os bolcheviques por terem ‘inventado’ a Ucrânia, em seu discurso de reconhecimento das repúblicas separatistas do Donetsk em 2022, Putin afastou-se claramente das realizações da Revolução Russa, retomando a ideologia expansionista do czarismo.”

Henrique Soares Carneiro - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Henrique Soares Carneiro - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Mas a lista de motivos mobilizada por Putin para justificar a invasão da Ucrânia vai além da reivindicação do país como um território russo. São nesses outros pontos que se detém o pesquisador Vicente Ferraro, do LEA. Ferraro examina as principais justificativas usadas pelo líder russo para iniciar a guerra, apontando suas incoerências e contradições em três pontos: a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a proteção da população falante de língua russa do leste e da região do Donbas e o combate ao nazismo.

O pesquisador reconhece que há fundamentos legítimos para um dos questionamentos da diplomacia russa à expansão da Otan, como o fortalecimento da aliança militar e sua aproximação das fronteiras russas. Já o argumento humanitário para a invasão, a defesa das minorias étnicas russas e russófonas, foi desrespeitado justamente pelo próprio conflito, argumenta Ferraro. Em apenas quatro meses de confronto, o número de mortes civis superou oito anos de guerra no Donbas, com a população russófona do leste sendo exatamente a maior vítima do embate.

Por sua vez, o combate ao nazismo que estaria infiltrado no Estado ucraniano é entendido por Ferraro como uma estratégia de ‘demonização’ do oponente utilizada por Moscou. O pesquisador aponta que, apesar de a Ucrânia abrigar grupos neonazistas e haver certa leniência das autoridades quanto à atuação deles, nenhuma evidência comprova apoio social ou influência política que justificariam um ataque.

A partir dessas análises, Ferraro apresenta quais seriam, em sua opinião, as verdadeiras intenções de Putin para o conflito. A primeira corresponderia à sua busca por sustentação do regime, utilizando ameaças externas como recurso de legitimação ideológica. Outra motivação passaria por sua visão ideológica e nacionalista, questionadora do direito de existência da Ucrânia como um Estado soberano. E, por fim, a busca pela manutenção da hegemonia russa no espaço pós-soviético, utilizando para isso a força.

O presidente russo Vladimir Putin - Foto: Wikimedia Commons

Em sua contribuição ao livro, Segrillo também esboça explicações para as causas do conflito, ampliando o leque de fatores que o constituem. Para o professor, um motivo importante se localiza na forma como o conceito de nacionalidade – que entenderíamos aqui como etnicidade – é compreendido nos dois países beligerantes.

“A Rússia e a Ucrânia são Estados multinacionais, diferentes do Brasil, por exemplo, que é um Estado nacional, um Estado-nação”, explica Segrillo ao Jornal da USP. “No Estado-nação, a nacionalidade se relaciona ao lugar onde a pessoa nasce. No Brasil, quem nasce aqui é brasileiro, não importando sua ascendência. Agora, nesses Estados multinacionais, a nacionalidade de uma pessoa não tem nada a ver com o lugar no qual ela nasce. Sua nacionalidade é a do seu pai ou de sua mãe. Isso eterniza as diferenças étnicas.”

Dessa forma, na Rússia e na Ucrânia, como em outros países do leste europeu, há uma divisão entre cidadania e nacionalidade. Zelensky, por exemplo, é um cidadão ucraniano de nacionalidade judaica. Já Viktor Ianukovytch, presidente deposto em 2014, é um cidadão ucraniano de nacionalidade russa. Na análise de Segrillo, isso acaba por contribuir para questionamentos e dúvidas sobre pertencimentos não só individuais, mas dos próprios grupos étnicos.

Isso porque nações diferentes convivem dentro de um mesmo Estado, explica o professor. E se, por um lado, uma grande riqueza cultural emerge disso, há também um alto potencial conflitivo. “Esse é um dos grandes dilemas da Ucrânia. Ela também está dividida internamente. Muitos cidadãos de nacionalidade russa apoiam a Rússia. A lealdade maior é com o Estado ou com a nação a que se pertence?”

O livro transita ainda por outras dimensões do conflito, como o cancelamento cultural que atingiu artistas russos logo após o início da invasão e que seria mais um capítulo de uma longa russofobia europeia, conforme escreve o professor Martín Baña, da Universidade de Buenos Aires, na Argentina. O campo das artes também aparece na contribuição da professora de Russo da FFLCH Elena Vássina, que discorre sobre a postura pacifista do escritor Liev Tolstói, e no texto da pesquisadora Leticia Mei sobre a obra poética de Vladimir Maiakóvski.

Ensaios sobre a Guerra Rússia Ucrânia 2022, de Neide Jallageas e Bruno Gomide (organizadores), Editora Kinoruss, 496 páginas, R$ 99,00.

O debate sobre o livro acontece no dia 17, segunda-feira, às 18 horas. A atividade é gratuita e on-line, via Google Meet. O link do evento pode ser solicitado através do e-mail laboratoriodeestudosdaasia@usp.br

A perspectiva das relações internacionais sobre o conflito

Capa do livro lançado pelo professor Felipe Loureiro - Foto: Reprodução/Editora UNICAMP
Capa do livro lançado pelo professor Felipe Loureiro - Foto: Reprodução/Editora UNICAMP

Linha Vermelha: a Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais no Século XXI é outro lançamento que vem agregar reflexões acadêmicas ao conflito. Organizado pelo professor Felipe Loureiro, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, o livro também reúne artigos de especialistas nacionais e internacionais que tratam desde os antecedentes do conflito até seus impactos no sistema internacional. Recebem destaque no volume as implicações do conflito para o Brasil e a China e as consequências nas relações Estados Unidos e Rússia.

“Em 16 capítulos, escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros de vários centros de pesquisa de excelência, o livro busca analisar a Guerra da Ucrânia a partir de uma perspectiva multidisciplinar, integrando história, ciência política, direito e economia”, comenta Loureiro.

Segundo o professor, quatro eixos norteiam as reflexões. “Primeiro, a natureza da guerra, incluindo as razões que motivaram a invasão russa. Em segundo lugar, as implicações do conflito no curto prazo, sobretudo em temas como segurança alimentar, refúgio e direito internacional. Em terceiro, a posição de países frente à guerra, com destaque para as nações do Sul global. E, finalmente, as perspectivas de longo prazo abertas pelo conflito no sistema internacional, com foco em economia e segurança internacionais”, explica Loureiro.
 
Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais no Século XXI, de Felipe Loureiro (organizador), Editora da Unicamp, 384 páginas, R$ 57,60.
 

Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.