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"Negro Drama", dos Racionais MC’s, é presente nas obras de Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto
Com base na análise dos diários do escritor carioca e da escritora mineira e dialogando com a música dos Racionais MC’s, pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP estudou a experiência do negro drama na literatura
Estudo, que busca aproximar o rap da literatura, estabelece a conexão entre diários do escritor e da escritora com a música Negro Drama, dos Racionais MC's
Mesmo escritos em épocas e realidades diferentes, é possível estabelecer uma conexão entre quatro diários por meio da música “Negro Drama”, dos Racionais MC’s. Diário do Hospício e Diário Íntimo, de Lima Barreto, Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Casa de Alvenaria, de Carolina Maria de Jesus, são livros que revelam uma experiência histórica em comum que se estende até o tempo presente.
A pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Fernanda Silva e Sousa estudou, em sua tese de doutorado, a experiência do negro drama, nomeada pelos Racionais MC’s no álbum Nada como um dia após outro dia, de 2002. Ainda que não denominada dessa forma, essa experiência estava presente nos diários de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus.
“A pesquisa é uma busca por aproximar o rap da literatura, nesse gesto de tentar narrar a própria experiência nos seus próprios termos, ou seja, a partir dos seus sentidos e valores, nomeando aquela realidade há tanto tempo ocultada. Essa racialização desse drama se coloca na contramão do que havia até então no Brasil, um discurso muito embasado no mito da democracia racial, na mestiçagem. Quando os Racionais lançam ‘Negro Drama’ há uma racialização radical dessa experiência dizendo: existe um drama específico vivido pela população negra”, explica.
“Você tem o negro drama não apenas como a experiência vivida pelo negro – uma experiência que é fundamentalmente traumática num contexto de violência –, mas também as diferentes formas narrativas que criamos para dar conta dessa experiência e representá-la”, acrescenta Fernanda.
Ao estudar o tema, a pesquisadora destaca que precisamos tomar cuidado para não cair em algumas armadilhas, por exemplo, transformar os diários de Lima Barreto e de Carolina Maria de Jesus em narrativas de superação. “Quando escutamos ‘Negro Drama’ dos Racionais, estamos falando de um sujeito que, ainda que tenha ascendido socialmente, continua enfrentando uma série de desafios do ponto de vista social e material, sendo visto como não humano, lidando com uma série de dilemas existenciais”. Com essa visão, Fernanda compreende que o gesto de escrever um diário não se configura como uma superação dessa experiência; trata-se mais da criação de um espaço de reflexão e elaboração dessa mesma experiência.
Outro aspecto estudado no doutorado foi a escravidão e as relações com os livros e os Racionais MC’s. De acordo com a pesquisadora, ao analisar a letra de “Negro Drama”, existe a narrativa de um sujeito que pensa nas sequelas da escravidão e entende que essa parte da história não está apenas no passado. “Acho que a maior contribuição do meu trabalho pode ser a incorporação do arquivo da escravidão para pensar a formação da literatura brasileira, principalmente como arcabouço possível para olhar as histórias de autores e autoras negras para além daquilo que está na superfície dos textos, fazendo o que o pesquisador Edimilson de Almeida Pereira chama de ‘arqueologia da memória escrava”, afirma.
Fernanda Silva e Sousa
Para analisar os diários, Fernanda optou por realizar uma crítica literária especulativa em relação aos textos, inspirando-se na ideia de “fabulação crítica” da historiadora Saidiya Hartman, que permite olhar para o texto e imaginar ações e pensamentos em cima do que não está presente textualmente, mas que pode ser pensado com base num repertório teórico e metodológico que assume a centralidade da experiência negra na modernidade.
A tese foi defendida no âmbito do programa em Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH, sob orientação do professor Marcos Piason Natali. Lima Barreto (1881-1922) escreveu Diário do Hospício em sua segunda internação no Hospital Nacional dos Alienados, entre o fim de 1919 e o início de 1920, enquanto Diário Íntimo foi organizado postumamente por Francisco de Assis Barbosa e reúne anotações que vão de 1903 a 1921. Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) publicou Quarto de Despejo: diário de uma favelada em 1960, e Casa de Alvenaria em 1961, após conseguir sair da realidade da favela do Canindé.
Um trecho de Negro Drama, um capítulo
Cada capítulo de desenvolvimento da tese tem como título diferentes versos da música "Negro Drama", trechos que são usados para a análise dos livros e do contexto da época. Fernanda explica a relação que foi feita em cada um deles:
Primeiro capítulo: A ferida, a chaga, à procura da cura
“Reivindico a beleza, a opacidade e o cuidado no trabalho de leitura e análise de autores negros em face a uma longa história de violência e sujeição, pensando numa gramática que vá além da resistência, o que exige uma reflexão ética sobre o que fazer com esses textos e a vida que está sempre em jogo ali. Além disso, procuro pensar nos sentidos e possibilidades que o gênero diário assume frente à experiência do negro drama.”
Segundo capítulo: Histórias, registros e escritos / Não é conto nem fábula, lenda ou mito:
“Mobilizo diferentes autores negros, algumas narrativas de escravizados e escravizadas, depoimentos de escravizados e canções de músicos negros brasileiros para pensar essa constante busca por narrar a experiência do negro drama, numa tentativa de abrir uma grande roda e formar um coro de vozes negras que os antecedem e que vêm depois deles.”
Terceiro capítulo: Eu num li, eu não assisti / Eu vivo o negro drama / Eu sou o negro drama / Eu sou o fruto do negro drama
“Penso nas noções de autenticidade, experiência e recusa do negro drama. Os Racionais estão falando da realidade, mas no interior de uma narrativa que não deixa de ser uma criação artística. Então esse capítulo é uma busca por refletir a relação íntima entre experiência e narrativa, pensando como a experiência contada na música não é narrada de uma maneira direta como se fosse um retrato transparente do real, ainda mais considerando que se trata de uma experiência traumática.”
Quarto capítulo: O trauma que eu carrego / Pra não ser mais um preto fodido
“Aqui os diários de Lima Barreto e de Carolina Maria de Jesus são vistos como narrativas do pós-abolição e como narrativas em que eles tentam realizar de diferentes maneiras belos experimentos de liberdade e de prazer. Não é simplesmente ascender e ganhar dinheiro, mas é poder viver tudo aquilo que o racismo pode tolher todos os dias. Reflito sobre o apagamento da população negra como parte da modernidade no Brasil e a importância de observar como o desejo de ser livre se manifesta em suas práticas, valores e escritos. Nesse sentido, analiso várias passagens dos diários como parte de uma ânsia coletiva por viver uma vida bela e livre, mas dando destaque para os contornos singulares e subjetivos que essa ânsia ganha em seus textos.”
Lima Barreto teve, por exemplo, sua imagem construída como uma pessoa celibatária. Neste capítulo, Fernanda tenta desassociar essa imagem dele, mostrando como o escritor flerta e deseja mulheres em suas andanças pela cidade do Rio de Janeiro. A pesquisadora também observa como Carolina Maria de Jesus tem uma grande vaidade e autoestima, impensáveis e incômodas para um imaginário racista e sexista, flertando e se relacionando com homens como uma tentativa de viver uma vida muito além do trauma.
Quinto capítulo: O drama da cadeia e favela / Túmulo, sangue / Sirene, choros e velas
“Me proponho a pensar Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus como sobreviventes da violência antinegro. Reflito sobre os perigos e armadilhas que, no pós-abolição, rondavam a população negra, cujos gestos de liberdade e rebeldia eram constantemente patologizados e criminalizados. Selecionei trechos dos diários que são marcados pela violência, pelo trauma, pelo anseio suicida ou pelo medo de enlouquecer.”
Carolina Maria de Jesus, por exemplo, conta um episódio em que ela e a mãe foram arbitrariamente presas em Sacramento, MG, sua cidade natal. Na delegacia, um soldado da polícia bateu nas duas e a mãe de Carolina tenta proteger a filha, mesmo sabendo que é um gesto impotente, chegando a ter o braço quebrado. Segundo Fernanda, o que estava em jogo ali talvez não fosse evitar a violência contra a filha, algo impossível naquele contexto, mas criar a lembrança de uma mãe tentando proteger a filha, de um gesto de cuidado em meio ao terror, como Carolina, muitas décadas depois, lembraria em seus escritos.
Negro drama além dos diários
Ao estudar documentos da história social da escravidão e do pós-abolição como narrativas, Fernanda notou que características do diário, como gênero intimista que narra a experiência do cotidiano, também podem ser vistos nessas outras modalidades discursivas. “É uma tentativa de construir uma visão sobre si e uma visão sobre o mundo que esteja na contramão de uma ideologia racista, da violência, da pobreza material”, salienta.
A conexão que foi vista entre as obras também pode ser notada com outros homens e mulheres anônimos e negros, que coexistiam com os autores e buscavam narrar sua própria experiência do negro drama em primeira pessoa. Essas narrativas podem ser vistas como fundamentais para a sobrevivência da população negra e conectam a literatura à vida de todas as pessoas.
“Quando busco na minha tese associar Racionais MC’s, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e mulheres e homens anônimos, estou também querendo pensar como todos nós, de diferentes maneiras, estamos cotidianamente narrando essa experiência. A minha mãe pode não escrever necessariamente um diário, mas ela está nas suas mensagens do WhatsApp, por exemplo, construindo uma narrativa sobre a experiência dela. As histórias que os Racionais contam em diferentes músicas têm uma íntima relação com o que autores e autoras negras escreveram em diferentes gêneros literários e com que narramos em nosso cotidiano”, conta a pesquisadora.
Fernanda, que também vive a experiência do negro drama, afirma que as pessoas não devem ter uma interpretação reducionista sobre a escolha do tema da pesquisa e a relação com ela, mas reconhece que sua trajetória teve impacto na tese. “Fui a única da minha família a me formar em universidade pública. Quando eu entrei na Universidade de São Paulo, lidei com uma experiência de uma espécie de desterro, porque eu estava num lugar em que a maioria das pessoas eram brancas, em que eu não me via nos professores, não me via nos meus colegas. É uma sensação de despertencimento a esse espaço, o que foi contrabalanceado pelo meu contato com o movimento negro na USP. Racismo, escravidão, discriminação, palavras que eram completamente interditadas do espaço da sala de aula, eu encontrava no movimento negro e, por meio dele, fui conhecendo uma série de intelectuais e autores negros que antes eu não conhecia, então isso me deu munição e repertório para pensar uma pesquisa a partir disso”.
A tese de doutorado A terrível beleza cotidiana do negro drama: uma leitura com e contra o arquivo da escravidão dos diários de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus, realizada por Fernanda Silva e Sousa e orientada por Marcos Piason Natali, foi defendida em novembro de 2023, e contou com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
*Da Assessoria de Comunicação da FFLCH
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