Marcando os dez anos dos protestos de junho de 2013, três diferentes mesas do 47º Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) discutiram os antecedentes e legados das manifestações na ação coletiva e na política institucional brasileira. As atividades aconteceram na semana passada, em Campinas, e contaram com a participação da professora Angela Alonso, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que neste ano lançou o livro Treze: A política de rua de Lula a Dilma. De forma geral, os pesquisadores rejeitaram a tese de que os protestos de 2013 foram o “ovo da serpente” que levou à ascensão da extrema direita no Brasil, oferecendo interpretações com mais nuances. O Jornal da USP relata alguns destaques dos debates.
O fórum do qual Angela participou lotou o auditório nas dependências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mesmo com a docente da FFLCH apresentando seu novo livro a distância. Ela estava fora do País e participou da atividade por videoconferência. Publicado pela Companhia das Letras, Treze reconstitui o panorama político brasileiro desde 2003, a fim de demonstrar que os protestos de 2013 foram “um mosaico de protestos diferentes, movimentos diferentes” mobilizados por campos distintos (o socialista, o autonomista e o “patriota”), sem coordenação entre si, e alimentados por insatisfações diferentes e frequentemente conflitantes. A única coisa que esses campos tinham em comum era a oposição aos governos do PT.
Quanto à resposta do governo Dilma aos protestos, Angela foi enfática: “Ela foi ineficaz porque se baseou na interpretação dos intelectuais petistas”. Assim, o governo não levou em consideração que o campo patriota estava nas ruas desde o início. “Os pesquisadores não viram isso porque só estudavam movimentos de esquerda”, sentenciou.
Uma década depois dos acontecimentos, ainda há disputas sobre os sentidos dos protestos e os motivos pelos quais os analistas políticos tiveram dificuldade em entender no calor do momento o que se passava nas ruas. De um lado, alguns pesquisadores vinculam junho à crise da democracia brasileira, culminando com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. De outro, há pesquisadores que destacam o protagonismo da juventude, a difusão do protesto de rua e a emergência de novos atores políticos – incluindo grupos de direita, mas também coletivos e organizações dos movimentos negro, feminista e LGBTQIAPN+.
As juventudes e os coletivos
A primeira mesa que tratou do tema durante o encontro da Anpocs reuniu as análises mais positivas sobre o ciclo de protestos. Olivia Perez, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), destacou como legado de junho de 2013 a socialização política das juventudes sob a perspectiva da crítica às instituições tradicionais e da proposta de uma nova forma de fazer política, mais horizontal e inclusiva, capaz de garantir a presença de grupos percebidos como oprimidos nos processos de tomada de decisão. “Eu aposto que a saída para vários dos nossos problemas está na juventude organizada em coletivos, na universidade e nas periferias”, disse a docente da UFPI.
Maria da Glória Gohn, veterana dos estudos sobre movimentos sociais no Brasil e professora da Unicamp, também destacou o elemento geracional como um dos pontos centrais para entender o ciclo de protestos de 2013. Ela lembrou que os jovens que foram às ruas na ocasião não estavam incluídos nos movimentos sociais tradicionais, associados à mobilização contra a ditadura militar nos anos 1980, nem nos conselhos de políticas públicas, que se configuraram como uma das principais formas de participação social no Brasil entre 1988 e 2013.
Em sua avaliação, os protestos de junho de 2013 não podem ser lidos como um fenômeno circunscrito ao território nacional, pois as táticas, grupos e slogans nas manifestações dialogavam com manifestações presentes em ou relacionadas a outras parte do mundo – a exemplo do uso da tática black bloc, da convocação on-line feita pelo Anonymous e das referências aos protestos da Praça Taksim, em Istambul, na Turquia. Maria da Glória destacou como legado de junho a legitimação do protesto social nas ruas e a construção das identidades dos ativistas nos contrafluxos da mobilização.
Para a docente da Unicamp, “junho não acabou, mas se transformou radicalmente”, alterando o cenário do associativismo no Brasil. Quanto ao que costuma ser chamado de “identitarismo” dos atores políticos que emergiram à esquerda desde 2013, Maria da Glória observou que atualmente as identidades dos ativistas são construídas no contrafluxo da mobilização. “(Esse é) um dos grandes recados que nem a própria esquerda quer ver”, disse a veterana.
Ricardo Fabrino Mendonça, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também destacou a centralidade dos protestos na construção de identidades comuns entre as pessoas que foram às ruas. “A experiência de correr de bombas juntos gera uma partilha”, comentou o professor da UFMG. Ele participou da segunda mesa sobre o tema realizada no encontro da Anpocs.
Ele afirmou que os protestos de junho ensinaram os ativistas a cadenciar as manifestações, a fim de manter sua visibilidade no contexto de abundância de informações da era digital. Além disso, os atos abriram uma janela de oportunidades para a mobilização de grupos que até então tinham pouca visibilidade na cena pública, incluindo forças autoritárias que estavam latentes desde a redemocratização.
“Me interessa muito o aspecto caótico de junho, que aparece muito nas disputas políticas em torno da causalidade (dos protestos)”, disse Ricardo. “Reduzir junho ao ovo da serpente não nos impulsionou para frente”, concluiu, tecendo uma crítica à tentativa do atual governo em retomar o sistema de participação e controle social a partir do que existiu antes de junho.
A cientista política Andréia Galvão, professora da Unicamp, conectou os protestos de 2013 à crise financeira de 2008. Diferentemente dos Estados Unidos e da União Europeia, que reagiram à crise de 2008 com políticas de austeridade, no Brasil o governo optou pelo fortalecimento do neodesenvolvimentismo. A reação, contudo, não segurou a perda de dinamismo da economia brasileira a partir de 2011, acirrando o conflito distributivo entre trabalhadores e patrões.
Em sua avaliação, a mobilização da alta classe média a partir da bandeira da luta contra a corrupção foi a novidade que fomentou nos anos seguintes tanto a ascensão do bolsonarismo quanto a retomada da ofensiva do projeto neoliberal, exemplificada pela “Ponte para o Futuro” do MDB e pelo teto de gastos aprovado pelo governo de Michel Temer. No entanto, Andréia também destacou desdobramentos dos protestos à esquerda: as ocupações de estudantes secundaristas nas escolas públicas em 2014, a proliferação de cursinhos populares, a primavera feminista, importantes greves de trabalhadores, o crescimento do MTST e do movimento negro, a inclusão do transporte como direito constitucional.
“Junho é um fenômeno que revela uma disputa por direitos, que é uma disputa em torno de modelos de sociedade”, disse a professora da Unicamp, lembrando que não é possível presumir a posição política dos manifestantes a partir dos cartazes que demandavam educação e saúde “padrão Fifa”.
Repressão e reação
A questão da repressão policial também foi abordada pelos pesquisadores que participaram das mesas sobre junho. Eduardo Georjão Fernandes, da Universidade Vila Velha (UVV), apresentou resultados de sua tese de doutorado em sociologia, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Analisando o policiamento das manifestações em Porto Alegre, ele observou que junho de 2013 foi o pico da repressão física dos protestos, mas também foi um momento de inovações táticas na vigilância digital dos ativistas. “O ano de 2013 foi encarado pelas forças policiais como uma espécie de laboratório (para a Copa de 2014)”, disse Eduardo.
Em sua apresentação em um dos fóruns de encerramento do encontro, Angela Alonso também fez referência ao perfil dos manifestantes de 2013: o estrato social super-representado nas ruas era de uma classe social que não dependia diretamente do Estado. Para ela, esse perfil ajuda a entender a forte reação social à violenta repressão policial do protesto realizado no dia 13 de junho de 2013 em São Paulo, que ganhou visibilidade com o depoimento de uma repórter da Folha de S. Paulo alvejada no olho por uma bala de borracha, atirada à queima-roupa. “Não foi pela violência policial em si, mas pelo perfil dos manifestantes”, comentou a professora da FFLCH.
Angela também chamou a atenção à seletividade da polícia e da mídia na maneira como trataram os manifestantes. Ambas ignoraram os patriotas, então descritos como “famílias de verde e amarelo” e vistos como antipolíticos. “O foco do Movimento Passe Livre como protagonista foi produzido pela cobertura, que ignorou outros atores presentes desde o início do ciclo”, disse a professora da FFLCH.