Como artistas negros e intelectuais brancos moldaram a história oficial do samba no Rio e em SP

A partir dos acervos do MIS nas duas capitais estaduais, pesquisadores compararam como as origens do samba foram narradas nas duas cidades

 12/06/2023 - Publicado há 11 meses

Texto: Silvana Salles
Arte: Carolina Borin Garcia

Acadêmicos do Tatuapé desfilam na Avenida Tiradentes, centro de São Paulo, em 1975. A década de 1970 consagrou a narrativa do Largo da Banana - Foto: Reprodução/USP Imagens

“O carnaval de rua nasceu na Barra Funda!”, sentenciou o sambista Dionísio Barbosa em uma entrevista concedida ao célebre historiador da música popular José Ramos Tinhorão e à antropóloga Olga Von Simson, em 1976. A entrevista foi parte de um projeto de história oral sobre o carnaval paulistano do Museu da Imagem e do Som (MIS). Espelhava um projeto semelhante que começou dez anos antes, em 1966, no Rio de Janeiro, quando o MIS de lá gravou depoimentos de João da Baiana e Pixinguinha sobre as origens do samba na cidade. Comparando suas impressões sobre os acervos do MIS de São Paulo e do Rio, dois pesquisadores da USP perceberam algo curioso: embora ambos os projetos tenham eleito um lugar desaparecido como “berço” do samba na cidade, as características distintas nas relações étnico-raciais de cada uma das cidades deu sentidos diferentes a esses “berços”.

João da Baiana, Pixinguinha e Donga (da esq. para a dir.) defendiam que o samba carioca nasceu na casa da Tia Ciata, na Praça Onze

No artigo Entre a praça e o largo: artistas e intelectuais na formação de dois “berços” do samba, publicado no número 83 da Revista do IEB, a arquiteta Renata Monteiro Siqueira e o antropólogo Rafael do Nascimento Cesar partiram dos resultados de suas pesquisas de doutorado para fazer uma reflexão conjunta sobre como a construção da história oficial da música popular brasileira é indissociável da assimetria entre intelectuais e artistas que a contaram. Essa assimetria, por sua vez, tem tudo a ver com a maneira como as relações étnico-raciais se constituíram em cada cidade.

“O samba nasceu aqui mesmo na casa da Tia Ciata”

No Rio de Janeiro de meados do século 20, imperava a ideia de que a “harmonia racial” era uma característica da sociedade carioca, o que poderia ser exemplificado pelo fato de pessoas negras e brancas frequentarem alguns espaços de sociabilidade importantes em comum. O discurso de uma sociedade harmônica era particularmente útil aos interesses do poder público, que procurava vender o Rio como a “capital cultural do Brasil”, depois de a cidade perder a sede do governo nacional para Brasília. O então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, inaugurou o MIS RJ em 1965 com o objetivo declarado de lançar o Rio de Janeiro como uma “força irradiadora de cultura para todo o País”, conforme afirma a instituição em seu site oficial até hoje.

Foi nesse contexto que o primeiro diretor do MIS RJ, Ricardo Cravo Albim, criou o projeto Depoimentos Para a Posteridade logo no ano seguinte à inauguração do museu. O projeto começou com a gravação de entrevistas com personalidades de diversos setores da cultura carioca. O samba, é claro, não poderia ficar de fora. Segundo Rafael do Nascimento Cesar, que trabalhou com o acervo do MIS RJ no doutorado, as primeiras entrevistas gravadas para o projeto foram com três músicos que circulavam pela antiga Praça Onze de de Junho, localizada no bairro Cidade Nova, região central do Rio de Janeiro.

Praça Onze de Junho, no Rio de Janeiro. A área foi demolida na década de 1940 para dar lugar a avenida - Foto: Facebook/Fotos do Rio Antigo

Esses músicos eram João da Baiana, Pixinguinha e Donga. Embora Pixinguinha vivesse em outro bairro e pertencesse a outra cena musical – a do choro –, João da Baiana e Donga eram moradores, filhos de algumas das famosas “tias baianas” que residiam no entorno da praça. Vale lembrar que a Praça Onze foi a sede do Carnaval oficial do Rio até ser demolida durante as obras para a construção da Avenida Presidente Vargas, nos anos 1940. Portanto, os depoimentos contavam uma história de um lugar que não existia mais.

Rafael reflete que a escolha desses músicos para iniciar o projeto não foi mera coincidência, pois os pesquisadores – brancos, pertencentes aos estratos médios da sociedade carioca – tinham relações próximas com seus entrevistados – negros, de classes populares. Ele explica que um dos objetivos de seu artigo foi evidenciar que o MIS RJ acabou por privilegiar uma narrativa específica sobre a origem do samba na cidade, em detrimento de outra.

“Havia duas narrativas de origem [do samba], uma que era a cidade e a outra, o morro. E o MIS é uma dessas instituições que vai dar voz a essas pessoas, como Pixinguinha, João da Baiana e Donga, que vão dizer: ‘ó, o samba nasceu mesmo aqui na casa da Tia Ciata’”, conta o antropólogo. A proximidade pessoal permitiu aos sambistas da Praça Onze fazerem valer sua versão da história do samba. E a proximidade era tal que “todos os entrevistadores que entrevistam lá no Rio de Janeiro o João da Baiana, o Donga, têm pelo menos uma história de bebedeira com esses caras”, completa Rafael.

Rafael do Nascimento Cesar - Foto: Lattes
Rafael do Nascimento Cesar - Foto: Lattes

“Ninguém quer estar com os dois pés dentro do Largo da Banana”

O MIS SP foi inaugurado em 1970, alguns anos depois de seu precursor carioca. No projeto de pesquisa que alimentou a coleção “Carnaval Paulistano”, o museu procurou repetir a experiência do Rio, identificando as origens do samba urbano de São Paulo. Era uma novidade, pois até então a intelectualidade branca paulistana só havia pesquisado o samba rural de Pirapora do Bom Jesus. Assim como no Rio, o projeto do MIS paulista acabou elegendo um lugar que não existia mais como “berço” do samba na cidade: o Largo da Banana, nome informal dado ao pátio de um antigo entreposto ferroviário localizado no bairro da Barra Funda, zona oeste de São Paulo. O local passou a ser informalmente chamado de Largo da Banana por volta dos anos 1950, concomitantemente à construção do Viaduto Pacaembu, que passou por cima do pátio.

O Largo da Banana fazia parte de um entreposto ferroviário na região da Barra Funda - Foto: Renata Siqueira

“Porque é uma narrativa que busca as origens, insiste muito naquele espaço anterior à metrópole. É tão análoga [à narrativa da Praça Onze] que é um viaduto que faz o Largo da Banana desaparecer. Só que o Largo da Banana é parte de um entreposto ferroviário fundamental da cidade de São Paulo, que estava em plena atividade nos anos 1950. Estava ainda ativo nos anos 1970. Enquanto operou esse pátio ferroviário, o Largo da Banana existiu”, diz a pesquisadora Renata Monteiro Siqueira, notando as contradições na narrativa oficial.

O Largo da Banana nunca foi um logradouro oficial. Era uma zona extremamente popular, de alta circulação de pessoas, especialmente trabalhadores braçais. Mas os sambistas mais velhos da cidade não o reivindicavam. Durante a pesquisa com as entrevistas que fazem parte do acervo do MIS SP, Renata observou que Dionísio Barbosa, fundador do Grupo Carnavalesco Barra Funda, não falava exatamente o que os entrevistadores queriam ouvir. “Se os entrevistadores do MIS estavam atrás de negros valentes, fortes, trabalhadores braçais, o Dionísio Barbosa não se reivindicava dessa maneira. Ele era um cara que falava que era muito católico, muito respeitador, muito trabalhador. Conseguiu galgar uma posição social que fazia questão de marcar a hierarquia entre ele e esses trabalhadores braçais do Largo da Banana. E aí, ele narra em terceira pessoa algumas histórias, que são as que cativam os entrevistadores, e é isso que eles começam a repetir”, diz a coautora do artigo.

Nem mesmo Zezinho da Casa Verde, que foi um dos trabalhadores do Largo da Banana, reivindicava o local. Pelo contrário. Na entrevista à pesquisadora do MIS Olga Von Simson, ele diz que o “pátio” da Banana nunca foi pátio de samba. Diferentemente do Rio, onde os sambistas faziam questão de falar que estiveram na Casa da Tia Ciata – a matriarca do samba carioca –, em São Paulo “ninguém quer estar com os dois pés dentro do Largo da Banana”, explica Renata. Quem passou a reivindicar o Largo da Banana como berço do samba paulistano foi uma geração mais nova que a de Dionísio e Zezinho da Casa Verde. Uma geração que teve seus principais expoentes em Inocêncio Tobias, fundador da escola de samba Camisa Verde e Branco, e Geraldo Filme, que narrou uma série de causos sobre o Largo da Banana em um disco produzido junto com o escritor Plínio Marcos e outros sambistas.

Renata Monteiro Siqueira - Foto: Arquivo Pessoal

Na avaliação de Rafael e Renata, a narrativa sobre o Largo da Banana pôde ser transformada em história oficial porque os intelectuais do MIS não conheciam aquela zona de entreposto ferroviário. Ao contrário do MIS RJ, onde os intelectuais e jornalistas que começaram o projeto Depoimentos Para a Posteridade tinham relações de afinidade com seus entrevistados, em São Paulo os envolvidos com os projetos de pesquisa do MIS viviam em um universo muito distante daquele dos sambistas paulistanos.

Olga Von Simson, José Ramos Tinhorão e Ricardo Cravo Albim foram alguns dos intelectuais brancos que contribuíram com a historiografia do samba

O MIS SP começou suas atividades organizando seus projetos de acordo com parâmetros acadêmicos, em convênio com a USP. Olga von Simson e Ieda Brito, que trabalharam na pesquisa do “Carnaval Paulistano”, eram estudantes de pós-graduação na época e inicialmente nem sabiam onde encontrar seus entrevistados. Ainda assim, buscando as origens do samba urbano, elas mapearam uma área da cidade que inclui, além da Barra Funda, os territórios do Bixiga e da Baixada do Glicério, ambos na região central. Na década seguinte, em diálogo com o trabalho do jornalista e sociólogo Muniz Sodré, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik identificaria essas três regiões como importantes territórios negros de São Paulo.


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