Por Janice Theodoro da Silva
É comum encontrar desafios na internet. São sugestões enviadas por amigos internautas para seus colegas postarem imagens ou observarem um material disponibilizado na rede (Instagram, Facebook). Em geral envolvem postagem de fotos, pequenos textos ou perguntas, de caráter direto e incisivo.
Um amigo, entendido nos mistérios do mundo digital, constatou que as leituras nas mídias citadas não ultrapassam três linhas. Os escritos maiores são textos postados sem leitor interessado na publicação. Muita gente escreve, sonha ser lido, mas poucos querem ler. Não existe relação entre a qualidade do texto e a visualização. Portanto, escritores, não sofram inutilmente. Escrevam apenas. Bobagens, palhaçadas e bichos não raro geram curiosidade e são replicadas. Reflexões mais complexas despertam pouco interesse. Talvez, comenta o meu amigo, no Facebook ocorra uma leitura ligeiramente mais longa.
Voltando aos desafios, dou um exemplo. Apenas um, para não cansar o leitor, depauperado pela epidemia. Imaginem: Ficar em casa, num apartamento pequeno, com crianças e um pré-vestibulando, ao longo de um ano, sem escola, internet precária e pouco dinheiro. Ficou sem ar? Trata-se de hipótese cruel para estudantes, professores e pais.
A princípio professores e diretores de escolas imaginaram a possibilidade de oferecer aulas pela internet. Parecia simples, ligar o zoom, colocar os estudantes diante do computador e usufruir daquela calma proporcionada pelos joguinhos existentes no celular, usados pelos adultos quando pretendem conversar sem serem interrompidos.
Deu certo?
Não.
A mágica funcionou?
Não.
Uma metáfora explica o que aconteceu.
É possível considerar uma pera semelhante a um abacate?
Não.
No século 16, os conquistadores da América consideraram as duas frutas semelhantes, uma nascida na Europa e outra na América. Ambas, o abacate e a pera, podiam ser ingeridas, apresentando um sabor estimulante. Mas abacate é abacate e pera é pera. Nossos ancestrais mexicanos observaram apenas pequenas diferenças de tamanho e tonalidade. Centraram a atenção mais nas semelhanças do que nas diferenças. Percepções da realidade com número reduzido de variáveis conduzem a erros graves. Portanto, é recomendável ter cuidado com as aparências tanto de pessoas como de coisas. Um bom navegador sabe respeitar os oceanos, conhecendo as diferenças entre eles. Os oceanos são um só. Mas as diferenças são grandes. Diferem nas correntes (quentes ou frias), nos ventos, na densidade da água, nas estações do ano e tantas outras coisas. A conclusão lógica é observar, com detalhe, as diferenças e avaliar com igual cuidado as semelhanças.
A metáfora explica: aula presencial é uma coisa e ensino a distância é outra. As duas modalidades de ensino demandam ordenação, planificação e material adequado e, nos dois casos, aulas presenciais aqui e ali. São como a pera e o abacate, bojudas em baixo e mais finas em cima, igualmente verdes, a pera mais clara e o abacate mais escuro. A semelhança é aparente, superficial. Preparar uma aula presencial ou pela internet são duas atividades totalmente distintas. Assistir a uma aula em classe, com os colegas captando e interagindo a todo o momento com afetos, entonação de voz, passeio de olhos, riso, raiva e cumplicidade entre uns e outros, é diferente de ver um zoom. Nele a imagem é captada em um só plano, sem contexto sensorial. Para o aprendizado, especialmente no ensino fundamental, a diferença é imensa. Repito: imensa. No zoom o estudante interage com o plano, na tela, e com o olho, minúsculo, do computador, desprovido de qualquer expressão. Trata-se de um objeto estático, não de uma pessoa. A sensação predominante é distanciamento, às vezes indiferença. O clima sugere diabruras de pensamento, especialmente para quem escuta e não foi chamado para falar, e diabruras de ação, como acessar um jogo durante a aula ou conversar com os amigos, escapando da aula virtual e do olhar paterno.
A natureza do desafio imposto pela pandemia para todos os estudantes foi ressignificar as atividades cotidianas, profissionais e afetivas. A pandemia do coronavírus obrigou a população a um sacrifício enorme, de súbito, exigindo improviso. Cada pessoa foi obrigada a encontrar uma nova solução para o seu modo de vida, para responder às novas necessidades de seus filhos, pais e amigos. Nem sempre os indivíduos envolvidos na mudança (idosos, jovens e crianças) dispunham das habilidades necessárias para o uso da internet nessa modalidade (escola). O que era di-versão (do latim vertere, virar, desviar) virou lugar de aprendizado e de transmissão de conteúdos complexos, em situação favorável à distração (olhar para o lado é bem mais interessante).
Diante desse desafio, sofreram e sofrem os professores, os alunos e os pais. Os professores porque não foram treinados em educação a distância nem tiveram tempo para organizar as aulas e o material para uso digital. Os alunos sofrem porque interromperam de súbito a rotina presencial no ensino fundamental e médio. Os pais sofrem ao confundirem a sua ansiedade, fruto de um mundo em mudanças e em epidemia, com os desafios de seus filhos (escola, Enem e vestibular).
Os exames de seleção (vestibular) e mesmo o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) são desafios fundadores na vida do jovem. Implicam avaliações complexas, de diversas áreas do conhecimento, em um momento de pleno vigor hormonal/afetivo do jovem. O futuro para os estudantes é incerto, tanto do ponto de vista da escolha de uma profissão como das relações de trabalho, sem deixar de lado questões de gênero e revolução de costumes. Ingredientes tão variados tornam a construção e escolha de um projeto de vida uma das causas de angústia entre os jovens.
Dentre tantas provocações neste ano de 2020, destaco primeiro a ansiedade dos pais, frequentemente refletida nos filhos. Num mundo inseguro, sem utopias, desencantado, a primeira sensação é medo e ansiedade. Medo dos pais, projetados nos filhos, de perderem o ano, o ânimo, a rotina do estudo, a chance de ganhar, rápido, um diploma, um emprego e, com ele, a independência, obtendo por conta própria dinheiro ou poder. Em seguida os estudantes, treinados em cursinhos para a competição, isolados em suas casas, temem seus adversários, sem dispor, como de costume, de um instrumento de medida bem calibrado, os simulados. E, finalmente, os professores, meus colegas, temem perder seus empregos, serem mal avaliados pela escola, pelos pais e pelos estudantes.
Resumo da ópera: A crise do ano de 2020 atingiu o emprego, a saúde, a vida, o ethos da nossa sociedade.
Ensino fundamental e médio: quantidades
Arrisco-me a dizer que os maiores desafios em relação à aprendizagem são o sexto ano do ensino fundamental e o último ano do ensino médio. O maior desafio ocorre na sexta série, especialmente nas escolas públicas. A prova é o significativo abandono da escola, tanto em tempo de pandemia como antes dela. A razão é a passagem de um mundo marcado pelos afetos/aprendizagem, momento em que a figura de um único professor capitaliza afeição e simpatia, para um outro momento, em que diversos professores trabalham conteúdos específicos com maior independência dos vínculos emocionais, significativos nos anos iniciais. O abandono da escola em instituições públicas alcança, no sexto ano, os marcadores mais altos, 4,6%, três vezes maior do que o dos anos iniciais do ensino fundamental.
A segunda etapa do desafio é a do ensino médio. Dos 27,3 milhões de estudantes matriculados no ensino fundamental, apenas 7,9 milhões chegam no ensino médio. Por volta de 10 milhões deixam os estudos. E, finalmente, o último e maior desafio: entrar na universidade, preferencialmente, pública.
Existem profundas diferenças no preparo dos alunos formados por diferentes escolas: públicas, militares, técnicas e privadas, tanto do ponto de vista dos conteúdos como em relação às habilidades e competências. Observem-se os dados. A probabilidade de o estudante de escola pública entrar na universidade é de 36% e os da escola particular 76%, comprovando a desigualdade. Os dados atestam ser o vestibular no Brasil um triste divisor de águas na vida dos jovens brasileiros.
Como enfrentar um desafio desigual em ano de pandemia?
Não adianta esconder o sol com a peneira. O desafio é desigual no começo, no meio e no fim. O Brasil é um pais profundamente injusto e a pandemia aprofunda ainda mais as distâncias. Embora essa afirmação seja visível e de consenso entre os analistas, a escola pública é um dos poucos caminhos possíveis para vencer a desigualdade. Pelos dados e razões apresentadas, esse corredor deve ser mantido aberto, bem cuidado pelo Estado, garantindo igualdade de direitos. Observe-se o que aconteceu no Chile: sem canal de ascensão social, a panela de pressão, da desigualdade social, explodiu.
Muitos estudantes da escola pública, em razão das inúmeras dificuldades enfrentadas, optaram em 2020, com dor e generosidade de alma, baixar a ansiedade, assumir a perda e atrasar por um ano o sonho representado pelo Enem e pelos vestibulares. Que imenso sentimento de perda representa para muitos jovens, na adolescência, deixar o sonho de um ano para um outro. Para confirmar essa percepção da realidade, basta observar a diminuição do número de inscritos nos cursinhos populares, muitos deles perderam até metade de seus alunos.
O que garante um melhor desempenho na escola, na profissão e na vida?
Rapidez na obtenção do diploma?
Não.
Ser o mais jovem aluno formado, com diploma na mão, não garante sucesso profissional e pessoal. A boa educação e o maior sucesso profissional são frutos de uma série de habilidades desenvolvidas na vida e na escola. O eixo central para a obtenção do “sucesso” é o desenvolvimento do livre-arbítrio do indivíduo, o domínio da sua vontade, da perseverança e, especialmente, da expansão da sua capacidade em lidar com as frustrações. Crianças e jovens acostumados com uma proteção exagerada tendem a desanimar quando não são satisfeitos, de imediato, nas necessidades e vitórias. Parece estranho, mas treinar a superação de desilusões (afetivas e profissionais) faz parte de um longo aprendizado. É importante também o reconhecimento de um ethos próprio, com implicação na linguagem, nas formas narrativas, capazes de nos aprisionar ou libertar. O detalhe é importante: a palavra é anterior à ação e ao diálogo, a palavra é protagonista invisível de trajetos de pensamento conformadores de hábitos e costumes. As estruturas narrativas, contidas na nossa prosa, na maneira de falar, devem ser decodificadas, exercitadas, compreendidas nas suas diferentes versões (linguagem digital, sonora, visual, escrita, entre outras), percebidas como lugar de aprisionamento e exercício, invisível, de gênero e poder.
Viver exige arte para acertar o ritmo, o passo. O aprendizado se aproxima mais de uma dança com movimentos elaborados do que de uma corrida em que ganha o primeiro que acumular mais (dinheiro, poder, amigos na rede etc.) em menos tempo. Correr nem sempre faz bem para a saúde física e mental. Dançar é melhor. Pressupõe conhecer o próprio corpo, o ritmo da respiração, os sons e mesmo os cheiros. Tanto num caso como no outro, correndo ou dançando, o ponto final é sempre igual para todos nós. Seremos pó. Em resumo, não é necessário correr: o vestibular de 2020 é uma experiência importante, mas não é a única chance dada pela vida.
Avisos
Aviso número um: os vestibulares se repetem todos os anos.
Aviso número dois: o vestibular informa menos sobre a nossa condição humana e do planeta do que a pandemia. Ele não nos torna mais conscientes das coisas.
Aviso número três: a tragédia vivenciada por tantas famílias é indicio de profundas reflexões sobre a qualidade da nossa vida, sobre como vivemos (produzimos, consumimos e distribuímos), sobre a possibilidade de a humanidade se unir para produzir e distribuir saberes, conteúdos, com um pouco mais de igualdade e uma dose caprichada de philia (amizade política na pólis).
O ano de 2020 foi marcado por mudanças e ressignificações dos papéis e das coisas. Novas habilidades foram vivenciadas, em razão da covid-19, lavar a mão e a louça, fazer comida, arrumar a casa, escolher entre ir ou não ir trabalhar, beijar ou não beijar, circular ou não circular, julgar a si ou aos outros, pedir ajuda ou não, administrar a vaidade, o egoísmo, a inveja, perder o emprego, em suma, são tantas coisas novas exigindo uma reinvenção de nós mesmos. O desafio é semelhante àquele vivenciado no pós-guerra. As populações, a partir das ruínas e sem o apoio de alguns familiares e amigos mortos, assumiram o desafio de edificar tudo novamente. Hoje, é necessário salvar a biodiversidade do planeta, mudar formas de pensar de muitos seres humanos e repensar a política.
2020 é um ano perdido?
Não.
É possível perder ou esquecer um ano em que tudo mudou de lugar. A terra tremeu menos (conforme indicaram os sismógrafos), os ruídos diminuíram, os animais andaram por ruas e estradas desertas, lojas e restaurantes permaneceram fechados por meses, os rostos foram cobertos, os beijos e abraços entre amigos e parentes foram proibidos. Muita coisa mudou. Com o saldo de mais de 100 mil mortos no Brasil, o ano foi uma demonstração comprovada do significado da vida humana em relação às atividades econômicas. O esforço para compreender essa equação em todas as suas dimensões é conteúdo para bem mais de um século.
2020 não é um ano perdido. Algumas pessoas perderam a vida em 2020 e com elas se foi o seu tempo, dom de cada um de nós, homens livres. Sobreviventes não perderam tempo, porque a vida não para, a vida segue seu rumo independente da nossa vontade. Os mortos deixam fartas lições-de-casa para os vivos, equações e histórias nem sempre fáceis de serem resolvidas.
Se o estudante do ensino fundamental compreendeu os riscos da pandemia (lavou as mãos e evitou contatos), se considerou os benefícios e malefícios dos seus atos, se observou as diferenças de práticas (manter-se mais ou menos isolado) de acordo com o trabalho e origem social de cada um e se contribuiu nos afazeres domésticos, ele está aprovado no ensino fundamental.
Se o estudante do ensino médio analisou os números de acordo com proporções, entre número de habitantes e o de mortos, se compreendeu o papel do Estado – do Legislativo, do Executivo e do Judiciário – na definição de políticas públicas e se observou como as diferentes linguagens (digital, visual, escrita, entre outras) interferem nas relações entre a doença e a coesão social (notícia falsa), ele está apto a prestar o Enem e os vestibulares.
Torço pela aprovação porque esse estudante desenvolveu as habilidades e competências necessárias para seguir a próxima etapa de sua formação.
Conhecimento científico, divulgadores de conteúdo e processadores de ética política
Do ponto de vista histórico, 2020 representa um marco, uma mudança de paradigma. O que isso quer dizer? O conhecimento especializado vai ter grande importância para muita gente no planeta. Mas, além dele, os saberes e habilidades estarão voltados para aqueles que detêm o conhecimento aprofundado de diferentes linguagens, com destaque para a digital, construção de narrativas tanto do ponto de vista formal como em relação aos conteúdos e todas as formas de linguagens artísticas.
O cerne da mudança estará concentrado na relação entre o conhecimento científico, extremamente sofisticado e produzido em âmbito mundial, as novas tecnologias de comunicação e a apropriação desses conteúdos por divulgadores. Eles serão responsáveis (estejam atentos) por inserir esses conteúdos em um programa ético com dimensão política. Serão eles os agentes impulsionadores do funcionamento das instituições políticas e democráticas. Atenção. Existe mudança no papel dos atores sociais, introdução de um novo ator em cena, capaz de interferir na manutenção ou destruição do Estado democrático de direito.
Finalmente: o que fazer depois da pandemia?
Raras vezes os primeiros alunos mais aptos no conhecimento dos conteúdos são aqueles que obtêm o melhor desempenho e felicidade ao longo da vida. A arte de educar envolve o reconhecimento da natureza de cada pessoa consoante com algumas habilidades e competências. O primeiro passo é o conhecimento de si mesmo, do que gostamos e queremos fazer. Em seguida, o segundo passo envolve a aplicação de altas doses de razão à natureza, depois a prescrição continuada de esforço, concentração, trabalho e foco.
Todo esse esforço, com qual objetivo?
Avaliar os infortúnios, as diferenças de riqueza, fama e honra. Manter o diálogo com os amigos (philia) de forma a permitir à razão preservar a pólis humanizada. Só ela é capaz de gerar felicidade.
Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.