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Fotomontagem com imagens de Freepik e Texturelabs por Rebeca Fonseca
Uma filosofia da ciência como justiça social
Para Hugh Lacey, responsável pela introdução na USP da disciplina Filosofia da Ciência, objetividade e valores não se excluem na prática científica
Apesar das tentativas ininterruptas do atual governo de colocar o saber científico em xeque, fazer ciência (ainda) é coisa séria. E parte importante, e frequentemente negligenciada, dessa seriedade consiste na reflexão sobre os pressupostos que cientistas, membros das agências de fomento, financiadores privados, políticos e mesmo a sociedade em geral assumem para a prática científica. Por um lado, é comum sua defesa como um empreendimento objetivo, imparcial, independente e desinteressado, fortemente influenciado pela tradição positivista. Por sua vez, a crítica pós-moderna se esforçou para revelar o caráter relativo de toda ciência, atravessada por motivações nem um pouco desinteressadas e imparciais.
Para o filósofo Hugh Lacey, contudo, a melhor maneira de olhar para a questão é através de uma síntese dessas duas posturas. Professor Emérito do Swarthmore College, dos Estados Unidos, Lacey – australiano radicado nos Estados Unidos desde 1972 – foi um dos responsáveis por introduzir a disciplina Filosofia da Ciência no curso de graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, no início dos anos 1970. Com longo histórico de colaboração com professores e pesquisadores da USP, ele agora será homenageado com um colóquio na FFLCH, que começa nesta terça-feira, dia 18, e vai até sexta-feira, dia 21.
“Ele propõe uma guinada para os valores”, explica o professor da FFLCH Pablo Rubén Mariconda, ex-aluno e colaborador de longa data de Lacey. “É uma concepção de ciência que dá lugar proeminente para os valores sociais e éticos na prática científica, mas que, por outro lado, não abre mão da objetividade e dos avanços propiciados pela ciência moderna.”
Tentando escapar tanto da fantasia objetivista do positivismo quanto do ceticismo paralisante da crítica pós-moderna, a obra de Lacey propõe um modelo para as interações entre atividades científicas e valores, conhecido pela sigla (M-CV). Com o modelo, o filósofo recusa a tese de que a ciência seja livre de valores, mas, ao mesmo tempo, reconhece que existe, sim, espaço para a objetividade na prática científica. Lacey faz isso sugerindo uma distinção entre valores cognitivos (como adequação empírica, consistência interna e o poder explicativo de uma teoria, por exemplo) e valores não cognitivos (valores sociais e morais).
Pablo Rubén Mariconda – Foto: IEA/USP
Dessa forma, o que o filósofo faz é construir um quadro de análise no qual questões epistemológicas, referentes à natureza do conhecimento, aparecem ao lado dos impactos concretos da ciência na sociedade. Lacey mostra como as ideias de dominação da natureza e progresso tecnológico, os motores da prática científica corrente, são na verdade valores éticos externos a ela, confundidos como inerentes à ciência. E, em lugar desses valores, conclama os cientistas a considerar os contextos sociais e ecológicos durante a escolha das estratégias de suas pesquisas.
Um dos temas tratados pelo filósofo no qual isso aparece é o dos alimentos transgênicos. Segundo Lacey, o conhecimento envolvido no desenvolvimento dos transgênicos está em acordo com a imparcialidade, mas fala pouco sobre riscos ambientais, sociais e sanitários decorrentes de seu uso, além de praticamente silenciar sobre alternativas, como a agroecologia. Conforme aponta o filósofo, essa ênfase não é fruto simplesmente da objetividade científica, mas envolve considerações políticas, sociais e econômicas. Caso outra ordem de considerações estivesse em jogo, diferentes estratégias de pesquisa, que levassem em conta as alternativas, poderiam ser desenvolvidas.
Neutralidade, imparcialidade e autonomia
Dentro do quadro proposto por Lacey, os conceitos de neutralidade, imparcialidade e autonomia da ciência são aprofundados e recebem novas significações. Segundo Mariconda, a neutralidade científica é vista sob vários aspectos, podendo ser dividida em duas grandes partes, a neutralidade cognitiva e a neutralidade na aplicação da ciência.
A neutralidade cognitiva é aquela que aparece na análise das hipóteses e das teorias, para a certificação de sua cientificidade, a confirmação de que elas revelam um conhecimento relevante sobre o mundo. Aqui se aplicariam apenas valores cognitivos, interessados unicamente no conhecimento e no entendimento que uma certa hipótese ou teoria produz sobre o mundo. Esse é o espaço para a imparcialidade, já que cabe ao cientista neutralizar todos os seus outros valores – sociais, políticos, religiosos, estéticos – no momento dos testes.
“Na nossa visão, todos têm seus valores, e os cientistas não são diferentes”, comenta Mariconda. “Eles também têm posições políticas, religiosas, apreciações estéticas. O problema é que, no momento da avaliação científica, é preciso neutralizar esses valores. Uma teoria só é aceita imparcialmente quando é aceita apenas por seu conteúdo de conhecimento.”
Já a autonomia da ciência, explica o professor, é um valor que surge na aurora da sociedade moderna, tendo como exemplo clássico o processo contra Galileu Galilei, no qual a liberdade da pesquisa científica é contraposta aos dogmas religiosos e à ingerência política. “Nós sabemos dos efeitos deletérios da interferência política, como na época do nazismo, com a ideia de uma ciência ariana.”
Por sua vez, a questão da neutralidade na aplicação da ciência envolve a legitimidade de se colocar em prática certos conhecimentos científicos. Na atualidade, isso passa pela avaliação das consequências sociais, ambientais e políticas de determinada descoberta ou nova tecnologia. Para Lacey, conta Mariconda, há um componente ético e social nesse processo, e a neutralidade deve ter algumas características básicas. Primeiramente, a aplicação de um avanço científico deve ser a mais igualitária possível, satisfazendo o maior número de perspectivas de valores. Em segundo lugar, deve ser distributiva, alcançando o maior número possível de pessoas.
Há ainda um outro ideal que Lacey e seus colaboradores introduzem nessa concepção do fazer científico que é a abrangência. Trata-se da ideia de que a ciência deve ser aplicada ao maior número possível de objetos do mundo, sempre em expansão e contato com outros conhecimentos. Com isso, outras formas de saber, como os conhecimentos indígenas e a agricultura tradicional, por exemplo, são colocadas em diálogo com a ciência, sem o estabelecimento de relações hierárquicas entre elas.
Tendo em vista o ideal da abrangência, comenta Mariconda, é necessário cada vez mais fazer pesquisas sobre os riscos e as consequências das atividades científicas, sobretudo no que diz respeito ao meio ambiente. “É preciso desenvolver pesquisas para reparação ambiental e reparação sanitária, por exemplo. E, nesse sentido, o modelo propõe também uma reestruturação das universidades, para que elas não sejam movidas única e exclusivamente por valores de mercado. Elas precisam incorporar, principalmente, valores de sustentabilidade ambiental.”
Isso significa, para o docente, dizer que a ciência também deve tratar de alternativas. “As escolas de Agronomia, por exemplo. Poucas possuem a agroecologia como uma especialidade. Pesquisas nessa área acabam sendo feitas geralmente por ONGs, entidades fora do sistema universitário. Às vezes, as alternativas são melhores do ponto de vista ambiental. Podem ser menos produtivas do ponto de vista econômico, mas se levarmos em conta o desgaste ambiental veremos que muitas alternativas podem ser melhores.”
“A perspectiva que o modelo coloca é a da justiça social”
O colóquio que celebra os 50 anos da colaboração de Hugh Lacey com a USP acontece de 18 a 21 de outubro e contará com a presença do filósofo. Houve alterações nas datas e locais de algumas atividades.
Nos dias 18 e 19, terça e quarta-feira, as atividades serão realizadas na Casa de Cultura Japonesa (Avenida Professor Lineu Prestes, nº 159, na Cidade Universitária, em frente ao prédio de História e Geografia da FFLCH).
Já nos dias 20 e 21, quinta e sexta-feira, o horário e o local serão os mesmos como programados: das 14 horas às 18h30, no prédio de Filosofia e Ciências Sociais da FFLCH.
O minicurso de apresentação do modelo das interações entre atividades científicas e valores – que será ministrado por Mariconda -, antes previsto para os dias 18, 19 e 20, será realizado em 7, 8 e 9 de novembro, das 9 às 12 horas, na sala 119 do prédio de Filosofia e Ciências Sociais da FFLCH.
O lançamento do livro Valores e Atividade Científica 3, de Lacey, ocorre no dia 20, a partir das 18 horas, no prédio de Filosofia e Ciências Sociais. Trata-se do volume mais recente de uma trilogia iniciada em 1997, fruto da constante colaboração de Lacey com seus pares brasileiros.
Além de estar presente nas atividades vespertinas do evento, Lacey participará da conferência de encerramento, no dia 21, sexta-feira, às 15h30, ao lado de outro de seus ex-alunos, o professor Renato Janine Ribeiro, também do Departamento de Filosofia da FFLCH. Ele fará palestra sobre pluralismo estratégico e a reorientação da pesquisa científica. Antes dele, às 14 horas, Janine – atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – falará sobre Pesquisa científica, ética e democracia: o cientista entre três perspectivas e valores.
Segundo Mariconda, a proposta é reunir pesquisadores cujos trabalhos apresentam interlocução com a obra de Lacey, sobretudo com seu modelo de interação.
Dentre os temas confirmados para o colóquio, haverá mesas abordando a neutralidade na ciência, o papel dos valores na agroecologia e o diálogo de saberes com comunidades indígenas e locais. “É uma filosofia da ciência desenvolvida no Brasil”, afirma Mariconda. “É uma proposta mais adaptada à nossa situação, que se volta para os nossos problemas e é menos vinculada aos países do norte, sejam os Estados Unidos, sejam nações da Europa.”
“A perspectiva que o modelo coloca é a da justiça social”, diz o professor. “Isto é, o conhecimento deve representar a justiça social, a participação democrática e a sustentabilidade ambiental. Acho fundamental que a filosofia, principalmente a filosofia da ciência, trate do problema da fome e da soberania alimentar, por exemplo. É impensável que tenhamos atingido tal estágio de conhecimento científico e ainda tenhamos situações vergonhosas desse tipo.”
Cartazes sobre o evento que acontecerá na USP nesta semana: o lançamento do livro Valores e Atividade Científica 3 foi transferido para o dia 20, a partir das 17h30 – Fotos: Divulgação/FFLCH
“O importante, com relação às posições pós-modernas, é que o modelo não abre mão da concepção de ciência e tampouco a concede para a perspectiva neoliberal”, continua Pablo Mariconda. “O modelo consegue, inclusive, mostrar que a visão neoliberal é uma concepção não científica, que muitas vezes impede o desenvolvimento da ciência.”
O Colóquio em Comemoração: 50 Anos de Colaboração do Prof. Hugh Lacey e a Filosofia da Ciência do Departamento de Filosofia USP acontece de 18 a 21 de outubro na Casa de Cultura Japonesa (Avenida Professor Lineu Prestes, 159, Cidade Universitária, em São Paulo) e no auditório 14 do prédio de Filosofia e Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária, em São Paulo). A participação é gratuita, mas é preciso fazer inscrição no site do evento. Mais informações estão disponíveis aqui.
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