Seminário traz à discussão o mítico ano de 1968

Nos dias 6, 7 e 8, evento na USP vai abordar os 50 anos dos acontecimentos de 1968 e suas consequências para o mundo

 29/05/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 16/10/2018 às 14:54
Por

cc


O
ano de 1968 é considerado um marco da rebeldia dos estudantes, uma época de contestação. A própria década de 60 preconizava os conflitos. As convenções sociais mudavam rapidamente, grupos – negros, homossexuais, feministas – começavam a se organizar para reivindicar seus direitos. A cultura hippie emergia como um desdobramento moderno do movimento beatnik e as drogas eram seriamente discutidas. Nos Estados Unidos e na Europa, os protestos cresciam, enquanto no Brasil a morte de um aluno secundarista, Edson Luís de Lima Souto, em 28 de março de 1968, assassinado com um tiro no peito pela Política Militar, gerava comoção nacional e transformou-se num dos grandes atos políticos contra a ditadura militar. Em resposta, em junho é organizada a Passeata dos Cem Mil contra a repressão, que crescia quatro anos depois do golpe militar de 1964, e provocou a reação dos militares com o decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro, que dava poderes quase absolutos ao governo. As revoltas populares arquitetadas pelos estudantes tomam as ruas e começa uma “revolução armada”.

Missa na Candelária e movimento de tropas pelas ruas da cidade; missa em favor de Edson Luis Souto, estudante morto no conflito entre estudantes e a Polícia Militar: imagens dos agitados anos 60
(Clique para ampliar) – Foto: Jornal Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo

Para discutir esse período, de todos os ângulos – sociais, políticos, econômicos e culturais -, no Brasil e no mundo, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP promoverá, de 6 a 8 de junho, o Seminário Internacional Cinquenta Anos de 1968: a Era de Todas as Viradas. Durante os três dias do evento, serão realizadas mais de 70 mesas de discussão sobre vários fatos que marcaram o ano de 1968.

Também acontece, durante o evento, a exposição iconográfica Os Movimentos Estudantis no Brasil 1920-1970 nos Arquivos do IEB, montada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. No encerramento, no dia 8, será apresentado o espetáculo teatral Sons e Fúrias de 1968, com o Grupo Ô de Casa, além de lançamentos de livros.

Os participantes são professores da USP e de universidades do Brasil e do exterior. Representantes de movimentos sociais e políticos, intelectuais e artistas, muitos deles participantes de manifestações ocorridas em 1968, também estarão presentes. A organização do evento é do Departamento de História da FFLCH, com a colaboração de outros departamentos e unidades da USP.

“O ano de 1968 é um marco, mas tem um valor simbólico”, afirma o professor Osvaldo Coggiola, docente do Departamento de História da FFLCH e um dos organizadores do evento. Segundo Coggiola, que no seminário vai proferir a palestra 1968: Além da Lenda, é preciso focalizar a conjuntura da época – a segunda metade da década de 60 do século passado – em todos os países do mundo e mostrar por que houve uma tal convergência e mobilização de tantos países, da América do Norte, América Central, América do Sul, Europa e até da África. “É um evento multifacetado que não se pode reduzir a uma só dimensão.”

Jovens hippies em manifestação contra a guerra do Vietnã, em agosto de 1968 – Foto: Domínio Público/Library of Congress

Como afirma Coggiola, “1968 não foi só o Maio Francês, que, claro, teve uma enorme importância. Antes temos as mobilizações nos Estados Unidos, basicamente contra a Guerra do Vietnã, em Berkeley, que tiveram muita força e foram o início do fim da guerra – embora ela só terminasse sete anos depois –, além dos movimentos dos direitos civis, com grande repercussão”. O professor cita ainda os assassinatos do pastor Martin Luther King, um dos mais importantes líderes do movimento por direitos civis dos Estados Unidos, em 4 de abril de 1968, e de Robert Kennedy (candidato à Presidência dos Estados Unidos e irmão de John Fitzgerald Kennedy, presidente dos Estados Unidos assassinado em 1963), em 6 de junho de 1968. E reforça os principais protestos que aconteceram no mundo.

Maio Francês, “Outono Quente” na Itália, Primavera de Praga, Cordobazo na Argentina

O seminário vai abordar a Primavera de Praga, ocorrida em janeiro de 1968, período de liberalização política da Tchecoslováquia (hoje República Tcheca), durante a época de sua dominação pela União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial, quando Alexander Dubcek assume o governo e inicia uma série de reformas; o Maio Francês, onda de protestos que teve início com manifestações estudantis pela reforma da educação e que evoluiu para uma greve de trabalhadores que balançou o governo do então presidente da França, Charles De Gaulle; o“Outono Quente” na Itália, em que o país ficou demarcado por lutas operárias, movimentos de ocupações de casas e universidades; e o Massacre da Praça de Tlatelolco, no México, ocorrido em 2 de outubro de 1968, em que um protesto de estudantes que pediam mais liberdades civis foi brutalmente reprimido pelo exército mexicano e até hoje não se sabe ao certo o número de mortos.

Manifestação estudantil na França, em maio de 1968 – Foto: Fundo André Cros via Wikimedia Commons CC4.0

Há também mesas sobre 1968 e a África, que lembrará o levantamento geral de toda a população no Senegal, pouco lembrado, e sobre A Revolução Cultural na China, que, segundo Coggiola, “foi de grande importância porque abalou todas as estruturas do país e o próprio Partido Comunista Chinês”. Serão discutidos também temas como a luta dos estudantes espanhóis contra o franquismo, a situação em Portugal e o ano de 1968 na Alemanha e no Leste Europeu.Em relação à América Latina, haverá sessões sobre o Cordobazo na Argentina, “o Maio Francês, que na Argentina aconteceu em 1969”, Cuba e sua política externa e cultural, a Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas) e as revoluções no Chile e no Uruguai.

“1968 mudou tudo. Não discutir isso é não discutir o mundo em que se vive”

No Brasil, como cita Coggiola, o grande ápice foi a Passeata dos Cem Mil, que aconteceu em 26 de junho de 1968, quando estudantes, religiosos, artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso e representantes de diversos outros setores da sociedade caminharam pelas ruas do centro do Rio de Janeiro contra o regime militar. Além disso, as mesas vão mostrar as mulheres na resistência à ditadura, as greves de Osasco (SP) e de Contagem (MG), o PCB (Partido Comunista Brasileiro), a ação popular do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), a imprensa alternativa nos anos de chumbo, os desaparecidas durante a ditadura militar e obras de intelectuais como o educador Paulo Freire e o sociólogo Florestan Fernandes.

Estão previstas também mesas sobre como os meios artísticos reagiram à censura, entre elas A Saga do Teatro Oficina – que por causa de sua estética anárquica acabou incendiado em 1966 –, contada por seu criador, Zé Celso Martinez Corrêa, O Cinema Novo e de Vanguarda, que terá a presença da atriz Helena Ignez, e A Música de Vanguarda e a Música Engajada nos Anos 1960. Em outra mesa, o foco serão os festivais, MPB e Tropicália, a cena dos quadrinhos brasileiros nos anos 60 e a politização da pop art.

Reprodução de página do jornal O Globo do final dos anos 60 Foto: Arquivo IEB – Fundo José Honório Rodrigues

E o que mudou nesses 50 anos? “O ano de 1968 é a origem da conduta que vivemos hoje”, diz o professor, elencando as mudanças como o casamento entre homossexuais, o movimento feminista, o movimento negro, “que não começou em 68 e sim muito antes, mas que viveu sua grande força nesse ano, com os Panteras Negras e o Black Power”, e atualmente com as cotas nas universidades; além da volta à vida natural com a indústria agroecológica. Segundo Coggiola, “68 mudou tudo. Foi um movimento único, mas não foi homogêneo, cada lugar teve sua luta particular. Não discutir isso é não discutir o mundo em que se vive”, conclui.

Como a arte enfrentou a censura

Na mesa A Politização da Pop Art, que contará com a participação de artistas e curadores, o professor Cauê Alves, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), vai falar sobre a mostra fundamental que aconteceu no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em 1967, intitulada Nova Objetividade Brasileira. “A mostra reuniu uma grande quantidade de artistas, acabando com aquela oposição entre São Paulo e Rio”. Os artistas “se posicionaram politicamente e esteticamente, dialogando com a linguagem pop e abrindo caminhos para o que se tornou o Tropicalismo – a obra Tropicália, de Hélio Oiticica, estava nessa mostra”, informa.

O palestrante também vai abordar a Bienal de 1969, “que foi a bienal do boicote”, e como isso foi orquestrado – muitos artistas sequer sabiam do boicote, articulado em outras instâncias. Segundo ele, artistas de Paris e de Nova York se recusaram a participar por conta da ditadura militar que havia fechado outras exposições, como a própria Bienal da Bahia, e que, depois do AI-5, estava cada vez mais numa linha dura com os artistas”, conta, acrescentando que Mário Pedrosa foi uma figura importante na articulação desse boicote. A artista Carmela Gross, que esteve presente com alguns trabalhos nessa Bienal, também participa da mesa.

Sobre a politização das obras, ele questiona: como discutir certas questões no interior de uma Bienal totalmente controlada? Que lugar a arte precisa encontrar sem perder sua ambiguidade, sua eficácia política de colocar questões de modo indireto? E dá como exemplo a obra da artista Mira Schendel, a misteriosa Ondas Paradas de Probabilidade, “em que ela tratava do invisível e ao mesmo tempo usava como estratégia uma citação bíblica para falar das atrocidades”. Segundo ele, valeria a pena repensar essas estratégias de inserção, e refletir “até que ponto é possível e vale a pena estar no interior do circuito artístico, e como é possível tencionar certas forças, como é possível colocar as questões relevantes do presente, sem, contudo, ser direto a ponto de a censura perceber, a ponto de ser cortado de uma exposição”.

Repressão levou à asfixia do Cinema Novo

Além da inovadora atriz Helena Ignez (O Bandido da Luz Vermelha, O Padre e a Moça, A Mulher de Todos), a mesa Cinema Novo e Cinema de Vanguarda tem como um dos palestrantes o professor Maurício Cardoso, do Departamento de História da USP, que vai abordar, principalmente, o Cinema Novo e sua relação com as vanguardas estéticas. “De maneira geral, o Cinema Novo teve relações bastante tensas e contraditórias com aquilo que a gente chama de Cinema de Vanguarda, produzido nos anos 20, ligado à tradição surrealista, por exemplo, e ao cinema de Eisenstein”, afirma. Em geral, a incorporação das inovações estéticas que o Cinema Novo vai realizar “foi atravessada por uma estética profundamente politizada do Cinema Novo, especialmente nos primeiros anos, e, a partir de 1966 e 1967, essa incorporação de procedimentos estéticos vinha mediada por uma preocupação do Cinema Novo com a comunicação com o grande público”, conta.

Segundo Cardoso, o Cinema Novo nunca foi um cinema exclusivamente de vanguarda ou que tivesse definido uma direção própria às vanguardas, “que é de um questionamento profundo sobre as potencialidades da linguagem cinematográfica”. “O Cinema Novo tinha uma experimentação muito controlada e marcada por esses interesses, de um lado uma investigação pela realidade do País e de outro uma tentativa de ampliar o público na medida em que os primeiros filmes eram vistos como muito herméticos pelo grande público. O diálogo mais profícuo que o Cinema Novo produziu não foi com a Vanguarda dos anos 20, foi fundamentalmente com o realismo crítico, realismo social dos anos 30, com filmes adaptados de obras de Graciliano Ramos, por exemplo. É só em 1969 que Joaquim Pedro de Andrade vai adaptar Macunaíma, fazendo uma leitura contemporânea do mito do caráter nacional e toda essa discussão que está em Mário de Andrade”, diz, acrescentando que “o Cinema Novo, embora tivesse inovação na linguagem, estava preocupado com essa investigação sobre o mundo social.

Cena do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade – Foto: Reprodução

Outro aspecto, informa Cardoso, é que a tradição que vai se construir do Cinema Novo tinha mais familiaridade com o cinema neorrealista italiano, que estava renovando a linguagem, mas ainda assim na chave do drama, do melodrama, com uma narrativa decodificada em termos de grande público e usando uma linguagem mais tradicional. O Cinema Novo brasileiro não foi um cinema que questionou a linguagem cinematográfica, ainda que haja experiências inovadoras, como o primeiro curta de Glauber Rocha, O Pátio (1959), ou o filme de Leon Hirszman Pedreira de São Diogo. “A maioria dos filmes vai dialogar de forma mais tensa com a tradição das vanguardas.”

Cardoso relata um episódio significativo, quando Glauber Rocha vai para a Europa lançar o Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), no Festival de Cannes, e Jean-Luc Godard faz um convite para que ele participe de uma cena do seu filme Vento do Leste. “Durante a encenação, ele rompe a proposta inicial de Godard”, diz o professor. Na cena, ele está em uma encruzilhada e a personagem principal pergunta ao Glauber qual a direção do cinema político. “Esperava-se que ele respondesse que o cinema político era o Cinema Novo, mas ele responde de forma enigmática, dizendo que a direção do cinema do terceiro mundo ‘é a direção de um cinema perigoso, divino e maravilhoso’, como na música Divino Maravilhoso, de Gil e Caetano, completando a fala (sua aparição é rápida, de apenas um minuto):  ‘É um cinema que vai construir tudo, as técnicas, as casas de projeção, a educação do grande público para assistir aos filmes’. Ou seja, é muito mais um cinema que está sendo construído e não um cinema como Godard está fazendo, totalmente iconoclasta, de questionamento e de implosão da linguagem cinematográfica.” Segundo Cardoso, ali havia um recado do Glauber: “Não dá pra gente fazer cinema de vanguarda querendo questionar tudo, porque a gente tem que ganhar o grande público”.

Cena do filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha – Foto: Reprodução

“Nem tudo é vanguarda. Nem tudo em 1968 foi transformação”, diz Cardoso. Segundo ele, havia uma tradição cinematográfica, uma tradição artística em jogo, e as inovações dependiam muito da própria experiência que estava sendo vivida no cinema brasileiro, diferente do cinema europeu, especialmente no cinema francês, em que 1968 foi um marco radical. “No cinema brasileiro, 1968 era vivido, primeiro, como um processo de repressão que praticamente vai levar à asfixia do Cinema Novo, logo depois começam os exílios e os grupos se dissolvem em termos de um processo mais integrado, e a própria censura. E, por outro lado, de 1968 em diante até o começo dos anos 70, há um crescimento cada vez mais intenso dos meios de comunicação, da televisão, do cinema de grande público e do cinema americano, que retoma o formato blockbuster.” Então há, praticamente “um emparedamento do Cinema Novo, que se vê pressionado tanto pela política, pela censura e pelo controle quanto pelo mercado. E as respostas em 1968 vão lidar com essa ambiguidade, essas tensões”.

Mesa discute as interfaces entre futebol e política

O futebol e sua relação política é tema da mesa Futebol e Ditadura Militar, que terá a participação dos professores Flávio de Campos, do Departamento de História da FFLCH e coordenador científico do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens) da USP, José Paulo Florenzano (PUC-SP), Sérgio Settani Giglio (Unicamp) e Denaldo Alchorne (Instituto Federal Fluminense). Segundo o professor Flávio de Campos, a mesa vai tratar das interfaces entre futebol e política no Brasil no período que antecede a conquista e também posterior à conquista do tricampeonato mundial de futebol, no México, em 1970. “Evidentemente o panorama político internacional vai ser abordado, com o impacto das tensões no México durante os Jogos Olímpicos de 1968, e questões mais gerais relativas às manifestações e tensões políticas envolvendo o futebol europeu.”

O Brasil conquista o tricampeonato mundial de futebol no México, em 1970 – Foto: Domínio Público via Wikimedia Commons

Os Jogos Olímpicos no México, que ocorreram em 1968, dez dias depois do massacre da Praça de Tlatelolco, em 2 de outubro, que por pouco não resultou no seu cancelamento, são lembrados por sua ebulição política. Um gesto – de dois atletas afro-americanos que subiram ao pódio erguendo o punho fechado com luvas pretas, em uma saudação utilizada pelo movimento Black Power e pelos Panteras Negras em apoio ao movimento dos direitos civis nos Estados Unidos – até hoje é considerado o mais emblemático e político na história dos Jogos Olímpicos. No futebol, o Brasil não teve muita sorte, o que foi compensado em 1970 com a conquista do tricampeonato na Copa do Mundo no México. Segundo o professor, a intenção da mesa “é estabelecer relações e nexos entre futebol e política no Brasil e fora dele”.


O seminário Cinquenta Anos de 1968: a Era de Todas as Viradas acontecerá nos dias 6, 7 e 8 de junho, a partir das 9 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, em São Paulo). A participação é gratuita, mas há necessidade de inscrição prévia, que pode ser realizada por este linkPara quem quiser certificado de participação a taxa é de R$ 10,00. A programação completa e mais informações estão disponíveis no site do evento.


Osvaldo Coggiola é professor da FFLCH-USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Arte: Caio Vinícius Bonifácio/Jornal.usp.br


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.