Revista USP aborda os conflitos, desafios e perspectivas do ensino religioso nas escolas

Artigos sobre transformações e experiências da disciplina no contexto escolar estão reunidos na nova edição da publicação da Superintendência de Comunicação Social da USP

 23/08/2024 - Publicado há 3 meses

Texto: Luiz Prado
Arte: Diego Facundini*

Fachada de uma igreja.

Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Marcelo Camargo/Agência Brasil; Rovena Rosa/Agência Brasil

A presença do ensino religioso nas escolas é o tema da nova edição da Revista USP, que acaba de ser lançada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP. A reunião de oito artigos que compõem o dossiê Religião e Escola procura dar conta dos desafios de conciliar democracia, esfera pública, vida privada, liberdades individuais e espiritualidade em um mundo no qual o papel e o espaço das religiões vêm adquirindo novas configurações. A revista está disponível na íntegra, gratuitamente, neste link.

“Nas democracias contemporâneas – independentemente de serem elas entendidas como seculares ou pós-seculares –, já não se conta com a expectativa de que as instituições religiosas tenham suas zonas de influência confinadas ao âmbito do privado”, escrevem na apresentação do dossiê a professora Paula Montero, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e o pesquisador Guilherme Borges, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Pelo contrário, o que se tem são atividades cada vez mais visíveis e vocais de representantes religiosos na esfera pública e especificamente junto ao Estado.”

Como aponta a dupla de pesquisadores, a laicidade e a neutralidade do Estado, assim como a liberdade religiosa, são questionadas nesse processo. E um dos espaços nos quais tal dinâmica se dá é a escola, onde a inclusão da disciplina de ensino religioso na grade curricular das instituições públicas é um tema central. Sobretudo no contexto contemporâneo de um pluralismo religioso que desafia a hegemonia católica, historicamente predominante, dentro do contexto brasileiro.

O artigo Ensino religioso no Brasil e na Argentina: entre confessionalidades e laicidades, escrito por Paula e Borges em parceria com Agostina Copetti e Sofia Armando, respectivamente doutoranda e graduanda pela Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, discute a questão a partir da comparação entre casos similares acontecidos nos dos países. Trata-se de decisões proferidas por suas supremas cortes a respeito da constitucionalidade das normas que permitem a presença do ensino religioso em escolas públicas.

Em 2017, ambos os países lidaram com a pauta, chegando a resultados opostos. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) reuniu maioria para decidir que o ensino religioso confessional nas instituições de ensino público não fere a neutralidade do Estado. Já a Corte Suprema de Justiça da Nação (CSJN), na Argentina, emitiu parecer em que considera a presença do ensino religioso em escolas públicas primárias uma violação da autonomia pessoal, da igualdade, da não discriminação e das liberdades de consciência e religiosa.

A análises das decisões, aponta o artigo, revela diferenças na forma como a diversidade religiosa é entendida em cada país. “No imaginário dos ministros brasileiros, a religião tem se mostrado fundamental como virtude cívica para a realização da cidadania e, mais do que isso, para a edificação da própria esfera pública”, escrevem os autores. “No caso da Argentina, a preocupação está no ‘perigo’ que a presença de denominações religiosas poderia causar ao Estado, cuja laicidade é retratada como uma ‘área muito sensível’, pois imaginada como que em constante risco de se perder.”

O professor Luiz Antônio Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contribui com o dossiê trazendo o histórico do projeto católico para o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Segundo Cunha, tendo sido a religião oficial durante o período colonial e imperial, o catolicismo viu o ensino de suas doutrinas ser retirado do ambiente escolar público com a proclamação da República. Suas fileiras não deixaram, contudo, de lutar pela reintrodução do ensino religioso – inclusive inspirando-se nas políticas do fascismo italiano –, o que se efetivaria nacionalmente com a Constituição de 1934.

O projeto instituído na era Vargas se manteria quase intacto por mais de 50 anos. Foi só nos debates da Assembleia Constituinte de 1988 que duas novas frentes se colocaram com força reivindicando transformações. Uma delas era composta por defensoras da laicidade na escola, reunindo universidades, sindicatos e movimentos sociais, que defendiam o fim da disciplina de ensino religioso. A outra era constituída pelas igrejas evangélicas, que tradicionalmente recusavam a disciplina, mas agora se mostravam divididas. De acordo com Cunha, a Igreja Católica conseguiria impor sua pauta na nova Constituição, mas com dificuldades não encontradas nas décadas anteriores.

Dentro do contexto da Nova República e das discussões sobre pluralidade, uma das frentes de atuação da Igreja Católica se encontra no Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper), entidade que, apesar de não diretamente vinculada à Igreja, conta com católicos leigos e sacerdotes em suas fileiras. Durante as discussões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2012, que incluíram o ensino religioso entre suas propostas, o Fonaper foi eleito como interlocutor exclusivo do MEC.

“O projeto católico para o ensino religioso nas escolas públicas, incorporado pela Constituição de 1934, foi posto em causa, e a disputa na confluência dos campos político, religioso e educacional deixou de ser apenas entre laicidade e confessionalismo”, escreve Cunha. “Tal projeto já não se define numa modalidade única, mas em duas, distintas e divergentes, a confessional e a não confessional. O conflito está longe de se resolver porque foi potencializado por uma situação anômica, não no sentido da ausência, mas da profusão e confusão de normas legais a respeito dessa matéria.”

Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Marcelo Camargo/Agência Brasil; Rovena Rosa/Agência Brasil

Outro artigo, assinado por Borges e Henrique Fernandes Antunes, também pesquisador do Cebrap, trata das transformações no ensino religioso brasileiro a partir do caso das escolas públicas do Paraná. Organizado pela Secretaria de Educação do Estado, o formato de ensino religioso instituído se destaca no cenário nacional pelo pioneirismo de seu perfil ecumênico e o posterior desenvolvimento de um caráter inter-religioso. O que não significa, entretanto, que não existam tensões em seu modelo.

“É possível classificar analiticamente o ensino religioso do Paraná como pluralista, uma vez que suas diretrizes apontam para a diversidade de religiões como um dado benéfico da realidade”, apontam os autores. “Entretanto, tal diversidade só se mostra bem-vinda quando reificada em torno de um mesmo ordenamento ético. No emaranhado do ‘politeísmo de valores’, é preciso encontrar um monoteísmo moral.”

Do Brasil para o Canadá, o texto da professora Solange Lefebvre, da Universidade de Montreal, apresenta a situação do ensino religioso na província do Quebec. Lá, a autora identifica a passagem de um ensino centrado na religião católica para uma pedagogia orientada pela noção mais abrangente e menos institucionalizada de espiritualidade. Tais reformas educativas recentes, salienta a autora, indicam que o aspecto religioso não se mostra mais como suporte para a identidade nacional.

“A investigação do surgimento do conceito de espiritualidade em políticas públicas, tanto no Quebec como em outros lugares, revela várias tensões em ação nos campos religioso e secular”, escreve Lefebvre. “Constitui um estratagema por parte de grandes grupos religiosos para preservar uma influência em sociedades que estão pondo fim às alianças oficiais com eles? Tornou-se um conceito abrangente para designar qualquer busca por significado, e também para satisfazer a uma busca por uma igualdade formal entre todas as formas de crenças, cultos e descrenças?”

O dossiê traz ainda texto sobre a presença do ativismo religioso nos conselhos tutelares e em debates sobre políticas públicas para a infância e a adolescência. Outra contribuição, por sua vez, recupera o papel das associações inter-religiosas nas políticas de pluralismo religioso implementadas nas escolas. E, fechando a coleção, um artigo a respeito da desconfessionalização do ensino religioso em escolas confessionais, motivada em grande medida pelos debates sobre diversidade religiosa.

“Os artigos aqui reunidos mostram que as diversidades religiosas e não religiosas acabam por levar para o interior das escolas um sem-número de lógicas, narrativas e imaginários capazes não só de fortalecer, mas também de tensionar os parâmetros da democracia pluralista, que são justamente o alicerce dessa multiplicidade”, escrevem Paula e Borges.

A edição 142 da Revista USP traz ainda um artigo que analisa um possível caso de plágio protagonizado por Machado de Assis (leia aqui), uma análise do duplo em O Lodo, de Murilo Rubião, e um texto sobre a produção colaborativa do artista visual Laercio Redondo e o arquiteto sueco Birger Lipinski, além da seção de resenhas de livros.

Revista USP, número 142, publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, 204 páginas. A revista está disponível gratuitamente neste link.

*Estagiário sob supervisão de Simone Gomes


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