Revista “Estudos Avançados” aborda violência no Brasil e no mundo

Nova edição da publicação traz também artigos em homenagem aos 270 anos de Goethe

 20/08/2019 - Publicado há 5 anos
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Intervenção urbana no bairro de Santa Inés, em Bogotá, na Colômbia, que ilustra o artigo de Claudio Beato publicado no dossiê Medo da Violência, da nova edição da revista Estudos Avançados – Foto: Reprodução/Revista Estudos Avançados

 

“Violência é um conceito escorregadio. Em seu núcleo mais antigo e amplamente partilhado, significa violação da integridade física de um indivíduo ou grupo. O uso da palavra geralmente representa o sentido de uma agressão a alguém. Mas com o tempo foi ganhando significado mais abrangente e dependente de uma disputa de legitimação.” Esse é um trecho de artigo assinado pelo professor Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicado no dossiê Medo da Violência, que integra o novo número da revista Estudos Avançados, publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

A América Latina, informa o professor, tem menos de 10% da população mundial, mas produz um terço dos homicídios do mundo. “Segundo as Nações Unidas, 14 dos 20 países mais perigosos do mundo estão na América Latina e no Caribe. Em 2017, 65 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. A polícia brasileira mata mais que qualquer outra polícia do mundo, mas também morre mais que em qualquer outra parte”, relata. O autor ainda afirma que a violência difusa no Brasil vem aumentando há pelo menos quatro décadas, diferentemente do que ocorre no México e na Colômbia, onde há cartéis de cocaína e outras drogas ilícitas. Segundo ele, os homicídios crescem em toda a América Latina, com a única exceção – por enquanto – do Chile. “Até Argentina e Uruguai, que tinham as taxas mais baixas de homicídios até dez anos atrás, já apresentam sensível crescimento da violência”, continua.

O escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe: silhueta (1805) – Foto: Reprodução/Revista Estudos Avançados

Mas quais sentimentos contemporâneos nossas cidades suscitam?, pergunta o professor Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Violência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eles mesclam-se além do triste espetáculo da miséria de nossas gigantescas favelas com o medo que é onipresente na vida dos habitantes das grandes cidades latino-americanas.” Segundo o autor, a distopia latino-americana descreve cidades violentas, palco de falhas socioeconômicas e institucionais que se sobrepõem. “Compreender essa conjunção de sentimentos e fatos é o desafio a que gerações de analistas, estudiosos, escritores e cientistas têm se dedicado ao longo de décadas”, constata.

O ensaio da professora Alba Zalluar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), parte da ideia de que a negação do medo afeta a construção e a eficácia das políticas públicas de segurança. No artigo de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há dados e informações compiladas da organização que dirige, além de pesquisas de outras organizações, mostrando que o Brasil não conseguiu reduzir a violência. “A partir dos anos 1980, a taxa de homicídios cresceu em média 20% ao ano e, desde 2014, convivemos com um patamar com cerca de 60 mil mortes violentas intencionais anuais (uma taxa nacional de 28 mortes para cada 100 mil habitantes)”, compara.

Recentemente, “nas eleições gerais de 2018 – e para surpresa de inúmeros analistas políticos – , o Brasil presenciou a emergência de uma nova conjuntura política, na qual discursos de dramatização da violência, de apologia da guerra contra o crime, de endurecimento das práticas penais e das políticas de segurança pública e de desvalorização dos direitos humanos se intensificaram e ganharam inédita audiência, ao propiciarem a eleição de inúmeros políticos em todo o País, em diferentes níveis e inclusive da Presidência da República, claramente comprometidos com diferentes formas de punitivismo e de populismo penal”, afirmam Gustavo Lucas Higa e Marcos César Alvarez – respectivamente, doutorando e professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP -, no artigo “Humanização das prisões e pânicos morais”, que encerra o dossiê.

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Goethe em seu quarto de trabalho, ditando ao secretário e escrevente Johann August John. Quadro a óleo de Johann Joseph Schmeller – Foto: Reprodução/Revista Estudos Avançados

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270 anos de Goethe

Comemorando os 270 anos de nascimento do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), artigos sobre sua vida e obra ganham as páginas da revista. A literalidade da autobiografia de Goethe é tema de Helmut Galle, professor de Literatura Alemã do Departamento de Letras Modernas da FFLCH. De Minha Vida: Poesia e Verdade foi iniciada quando o escritor tinha 60 anos e publicada em quatro partes (1811, 1812, 1814 e, postumamente, em 1833). Segundo o professor, ela se localiza entre os protótipos do gênero, servindo de modelo para centenas de autobiografias posteriores. O professor comenta que é louvável que a antiga tradução brasileira de Leonel Valandro (Goethe, 1971), esgotada há décadas, tenha sido substituída por uma sólida edição em capa dura e com uma nova tradução, realizada por Mauricio Mendonça Cardozo. Segundo Galle, foram acrescentadas notas explicativas que facilitam a leitura dessa obra, que contém centenas de referências a acontecimentos históricos remotos e pessoas hoje em dia desconhecidas.

Carta de Goethe (17 de junho de 1777) em que comunica a morte de sua irmã Cornelia (1750-1777) à condessa Auguste von Stolberg (1753-1835) – Extraída de Goetheana. A Centenary Portfolio of Forty-three Facsimiles. William A. Speck Collection, Yale University Library. New Haven, 1932

A correspondência de Goethe – estimada em mais de 20 mil cartas escritas, das quais 15 mil estão depositadas no Arquivo Goethe e Schiller de Weimar, e 25 mil recebidas – é objeto do artigo de Marcus Vinícius Mazzari, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH. Seus escritos científicos, ou estudos da natureza, são assunto de Magali Moura, professora associada de Língua e Literatura Alemã da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Já seus poemas são analisados por João Barrento, que estudou Filosofia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Portugal, e também traduz alguns deles em um anexo da revista.

Outro artigo trata da obra Fausto, em que Goethe empreendeu, de forma ousada, a tentativa de tornar completos os seus textos, mas só conseguiu publicar o drama de maneira fragmentária, como conta Michael Jaeger, professor da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, acrescentando que somente uma edição póstuma uniu todas as partes. “A primeira edição crítica completa do Fausto foi preparada sob a direção de Anne Bohnenkamp e, em 2018, apresentada pela Casa de Goethe em Frankfurt”, complementa.

Ainda no dossiê, está presente texto de Daniel Martineschen, doutor em Literatura e Tradução pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e responsável pela tradução de West-Östlicher Divan, que ganhou o título brasileiro de Divã Ocidental-Oriental, lançado pela Editora Estação Liberdade neste ano, exatamente quando se completam 200 anos de sua publicação original. Já o artigo “Goethe e sua ‘rede brasileira’”, de Sylk Schneider, curador e estudioso de romanística, geografia e economia em universidades da Alemanha e do Brasil, relata a proximidade do escritor alemão com o Brasil. Segundo ele, “praticamente não existe outro país não europeu com o qual Goethe tenha se relacionado tão intensamente quanto o Brasil”.

A nova edição da revista Estudos Avançados – Foto: Reprodução

A revista Estudos Avançados também traz o dossiê Tinta Negra, Papel Branco: Escritas Afrodescendentes e Emancipação, que, segundo a organizadora e professora Maria Helena Machado, tem como objetivo “analisar os parâmetros da narração da história pessoal como estratégia de apropriação do si mesmo e ainda como paradigma da emancipação”. Há ainda a seção Atualidades, abordando dois temas emergentes: o conceito de golpe de Estado, com a saída de Dilma Rousseff da Presidência da República, e invasão de privacidade e exploração de dados pessoais por empresas tecnológicas. Outra seção, Presenças, traz textos sobre dois especialistas, da cultura, Sérgio Milliet, e da agroecologia, Ana Maria Primavesi. A seção Poesia Contemporânea inclui uma coletânea organizada por Alberto Martins.

Revista Estudos Avançados, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, volume 33, número 96, maio-agosto 2019, 500 páginas. A versão on-line da publicação pode ser acessada neste link


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