Estatuto do Desarmamento pode ter salvado 135 mil vidas

Levantamento realizado pelo Mapa da Violência de 2016 concluiu que as políticas de controle das armas de fogo evitaram milhares de homicídios entre 2004 e 2014

 19/09/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 17/02/2017 as 11:28
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Foto: Sophia Paris/UN
Foto: Sophia Paris/UN


De 1980 a 2014, 967.851 pessoas morreram vitimadas por disparos de arma de fogo no Brasil. Os dados foram levantados pelo Mapa da Violência (projeto da Flacso – Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), que desde 1998 realiza estudos sobre a violência no País. O relatório de 2016 aponta ainda que, graças às políticas de controle das armas de fogo (implantadas em 2004 no Estatuto do Desarmamento), 135 mil homicídios foram evitados.

Segundo Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, economista e diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), este número de vidas salvas provém da diferença entre a estimativa de mortes para o período de 34 anos e os números de fato registrados: “Desde 1980, as taxas de homicídios por arma de fogo vinham numa crescente de 6% ao ano. Em 2004, o avanço caiu para 0,3%. Se a tendência de crescimento de antes do Estatuto se mantivesse, 135 mil pessoas a mais teriam morrido”, aponta.

A entrega de armas faz parte da Campanha do Desarmamento, que já recolheu mais de 64 mil armas - Foto: Roosevelt Pinheiro/Agência Brasil
A entrega de armas faz parte da Campanha do Desarmamento, que já recolheu mais de 64 mil armas – Foto: Roosevelt Pinheiro/Agência Brasil

As mortes por armas de fogo não são, entretanto, um problema que surgiu na década de 1980. Já no início do século 20, as taxas desse tipo de crime começam a aumentar e, em 1940, ultrapassaram os homicídios por outros meios, como armas brancas. A partir da década de 1970, começam a aumentar muito rapidamente, atingindo seu pico no final do século e começo dos anos 2000. Depois de mais de duas décadas aumentando 6% ao ano e atingir seu ápice, os índices praticamente congelaram em 0,3% de crescimento anual. As razões dessa estabilidade ainda dividem os especialistas.

Daniel Cerqueira acredita que o controle de armas promovido pelo Estatuto do Desarmamento teve impacto direto na diminuição das mortes. Para tanto, cita os resultados de sua pesquisa que relaciona o número de armas e a quantidade de homicídios. “Existe uma literatura internacional bastante consolidada [sobre a relação direta entre a diminuição do número de armas e a retração das mortes], é quase um consenso. No caso específico de São Paulo, descobrimos que para cada 1% a mais de armas, aumentam 2% os casos de homicídios”, afirma.

Leandro Piquet Carneiro, cientista político e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPs) da USP, endossa a importância do Estatuto, mas acredita que a maneira como a medida é aplicada em cada Estado influencia sua eficiência. Segundo ele, “a mudança na legislação foi muito positiva, principalmente nos Estados em que a Polícia Militar garantiu seu cumprimento: fez blitz, organizou apreensões, fez valer a lei e condenou os que a descumpriam”. Carneiro garante que, nesses locais, o padrão do uso de armas mudou drasticamente: “Ter uma arma legalmente ficou mais caro e muito mais burocrático”, completa.

Marcelo Batista Nery - Foto: Nev/USP
Marcelo Batista Nery – Foto: Nev/USP

Já Marcelo Batista Nery, sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, apesar de não descartar a importância do Estatuto, afirma que a redução das mortes, ao menos em São Paulo, é anterior à promulgação da lei. Ele observa que “no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, já se nota uma queda das taxas de homicídio na cidade de São Paulo e logo depois no Estado como um todo”. Ele lembra que o País e os Estados são muito heterogêneos, sendo impossível afirmar genericamente que uma medida foi responsável pela contenção das mortes.

Nery acredita ser viável, no entanto, inferir alguns dos motivos que guiaram a redução das taxas de homicídio na cidade de São Paulo. Primeiramente, grandes investimentos financeiros foram direcionados ao aumento do policiamento ostensivo e do sistema prisional. O pesquisador ressalta, porém, que a melhoria foi quantitativa e não qualitativa: mais pessoas foram indiciadas e encarceradas, mas em condições muito inferiores às ideais. Melhorias na infraestrutura disponível e nas condições socioeconômicas das famílias durante o período também são uma explicação plausível, uma vez que “locais cujos habitantes apresentam maior vulnerabilidade econômica, educacional e etária são os que apresentam as mais altas taxas de homicídios”.

O sociólogo acredita ainda que o controle de alguns territórios por organizações criminosas tem influência direta na diminuição das mortes. Ele cita o exemplo do PCC (Primeiro Comando da Capital), que mesmo tendo surgido posteriormente ao início da queda nos índices de homicídio, não pode ter sua intervenção subjugada. “Isso ficou claro em 2006, quando o PCC parou São Paulo. Estas organizações têm sim poder de atuação nessas taxas”, aponta. Nery afirma que o Estatuto do Desarmamento teve também um papel relevante nessa evolução, mas não pode ser considerado como agente único.

Foto: Maria Leonor de Calasans/IEA
Leandro Piquet Carneiro – Foto: Maria Leonor de Calasans/IEA

Opondo-se à tendência que se observa atualmente no Sudeste, grande parte dos Estados das Regiões Norte e Nordeste ainda apresentam taxas alarmantes de homicídios e de esclarecimento desses crimes. Leandro Piquet lembra, no entanto, que “Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco mostram que é possível mudar as tendências com certa rapidez. Pernambuco se tornou um dos Estados mais violentos no final do século passado, com Recife e Olinda entre as cidades com mais homicídios, mas apresentou uma drástica melhora a partir de 2007”. Segundo ele, o progresso se deveu principalmente ao programa Pacto Pela Vida, do governo estadual, aplicado sob liderança direta do então governador Eduardo Campos.

Apesar das pequenas discordâncias quanto às razões que levaram à estagnação dos índices de homicídios, os especialistas concordam em um aspecto: a grande falha das políticas públicas de segurança é que elas não são avaliadas quanto à sua eficácia. “Falta no Brasil um órgão que faça o acompanhamento desses projetos”, aponta Piquet. Para ele, o planejamento dessas medidas pode ser considerado bom, mas a aplicação ainda deixa a desejar: “O grande desafio é avaliar o impacto dos projetos e atualizá-los”, completa.

Marcelo Batista Nery também acredita que falta avaliação: “No Brasil, não se verifica se uma determinada política foi efetiva e os motivos disso”. Ele lembra que o acompanhamento é necessário nesses casos para que possíveis correções de rota sejam feitas. Ressalta ainda a complexidade da questão e a importância de avaliar as políticas de maneira proporcional: “Segurança pública é um fenômeno social amplo, heterogêneo e multifacetado. É importante que entendamos o que é mandatário num ponto de vista global e num ponto de vista local”.

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