Por Janice Theodoro da Silva
Em tempos de uso intenso de celular, computador e aparelhos movidos pela internet, precisamos tomar alguns cuidados. Primeiro, reconhecer o lado positivo do desenvolvimento tecnológico. Esse pequeno objeto é capaz de reunir uma infinidade de informações em um único artefato, pequeno o suficiente para caber no bolso. É maravilhoso.
Um celular ligado à rede de comunicações permite acesso fácil a um relógio, agenda, banco, clima, música, calculadora, entrega de comida, estacionamento, escola, jornal, táxi, médicos, GPS, línguas e tantas outras coisas, para além de informações dispersas pelo mundo.
Mas, como tudo na vida, esse objeto mágico merece ser observado com cuidado. O celular guarda semelhança com um sapato de uso contínuo, vai ficando torto de acordo com a nossa maneira de andar. Conforme ele é incorporado ao nosso corpo, torna-se parte, ganha a nossa forma, o nosso jeito, tende para o confortável e invisível. Sua utilidade é imensa, tornando quase impossível o seu esquecimento. Ele, o celular, oferece tudo, da realidade à fantasia: viagens, comidas, esportes, beleza, amizades, amor, raiva, identidades, objetos para desfrute, sublimação ou aquisição. A regra é respeito substantivo ao gosto, formatado, do proprietário.
Perigo à vista.
Esse pequeno objeto detém, em grande quantidade, informações articuladas sobre o seu proprietário. O pequeno objeto reconhece, com detalhe, os desejos do seu senhor, tanto do ponto de vista das pessoas como das coisas. Por conhecer desejos, até os obscuros, sabe seduzir e interferir, se necessário, na percepção do seu amo, tanto em relação ao mundo como na forma como o seu senhor vê as coisas, qualificando o certo, o errado e o possível. Ele não é passivo. É ativo.
O que fazer para inverter os papéis e dominar esse pequeno objeto e não ser dominado por ele?
Ver o que é interdito.
Observar, compreender e ver aqueles lugares, coisas e ideias matéria de censura branca. Foquem nos lugares invisíveis ou quase invisíveis para as diferentes mídias, observem as palavras, as coisas ou as ideias não autorizadas ou inacessíveis para o grande público, avaliem as justificações, e duvidem delas.
Um exemplo esclarecedor: o artista e ativista chinês Ai Weiwei, bastante conhecido e com obras expostas na Bienal, no Brasil, produziu um documentário chamado Coronation, sobre o lockdown em Wuhan, na China, durante a epidemia do novo coronavírus. O artista chinês segue uma trajetória marcada pela estética da resistência, produzindo obras provocadoras, fazendo lembrar o dadaísmo de Marcel Duchamp.
Duchamp merece ser lembrando na atual conjuntura histórica, marcada pelo florescimento de um forte irracionalismo conservador. Com ele observamos o retorno do autoritarismo, do silenciamento de pessoas, objetos e ideias. Assistimos a uma acentuada valorização da “normalidade”, de um conceito restrito de família, de uma moral retrógrada, obstáculos para imagens ou palavras capazes de fazer ver o que se preserva e o que se queima.
A escultura Fonte, um urinol de porcelana branca, enviado para uma exposição em 1917 e recusado pela Society of Independent Artists de Nova York, merece ser relembrada, com pompa e circunstância, na atual conjuntura conservadora. Não apenas em razão de constituir um marco na história da arte, mas, especialmente, por sugerir um tema contemporâneo: gênero. O fato, citado em carta pelo próprio autor, Duchamp, refere-se ao urinol como objeto enviado pela baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, poetisa dadaísta, evidentemente uma mulher menos conhecida que Duchamp nos meios artísticos. Duchamp diz na carta: “Uma das minhas amigas que adotou o nome de Richard Mutt me enviou um urinol de porcelana como escultura; como não havia nada de indecente, não havia motivo para rejeitá-lo”.
Seja lá como for, a ideia irreverente fez bem para a arte e, portanto, para os humanos, ao deslocar o lugar óbvio das coisas e o antigo conceito de representação. Esse deslocamento, apresentando um urinol, merece ser estimulado para trazer luz, iluminar outros lugares, onde ainda há vida.
Olhares cruzados no tempo ampliam a visão.
O documentário silenciado sobre o novo coronavírus, do artista Ai Weiwei, cumpre esse papel. O trabalho, de acordo com matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de agosto de 2020, não despertou interesse dos festivais de cinema em Nova York, Toronto e Veneza e das empresas Amazon e Netflix. A Netflix, na mesma matéria do jornal, diz “estar trabalhando no seu próprio documentário”.
O fato é curioso e merece destaque e atenção. Evidentemente o artista queria expor o seu filme em festivais internacionais e divulgá-lo por meio da Amazon e Netflix. Mas o filme desse artista renomado foi recusado. Os motivos para empresas e festivais declinarem, frente à oferta, são vários, envolvem o poderio econômico da China e sua concepção de liberdade política e estética.
Evidentemente as instituições e empresas citadas têm todo o direito de escolher o que pretendem adquirir e divulgar ou não, como informa a matéria do jornal O Estado de S. Paulo. Mas é sugestivo observar como um tema, a epidemia de covid-19, tratado de forma variada, intensa, realista, mentirosa e contraditória pelas diferentes mídias, pode, em razão da autoria e estética do documentário, ter divulgação controlada (com justificação).
O que significa cercear manifestações estéticas? O que representa silenciar, não ter autorização para analisar, criticar e confrontar concepções artísticas, cinematográficas, musicais, literárias, entre tantas outras?
Duchamp, estimulado pela baronesa, ao expor o urinol de porcelana não estava preocupado em representar uma determinada realidade, mas em apresentar um objeto para fazer ver os absurdos, abusos, irracionalidades que a “normalidade” e os “normais” não nos deixam ver.
O urinol, de Duchamp ou da baronesa, foi retirado rapidamente da exposição.
Resumo da ópera:
- O melhor antídoto para o processo de formatação de grande parte da humanidade levado à frente pelas mídias digitais é ver, ouvir, sentir e desconstruir os modelos propostos pelas mídias, inclusive pelo seu celular;
- Observar em detalhe proposições, alternativas e mesmo as qualidades daqueles indivíduos postos à margem do rio;
- Não ter medo do vazio e da morte para poder dizer não à cegueira.
Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP