Newton da Costa: morre o “pensador da contradição”

Docente do Departamento de Filosofia da USP sai de cena aos 94 anos, deixando como legado a lógica paraconsistente

 17/04/2024 - Publicado há 7 meses
O professor Newton da Costa em 1973 - Foto: George Bergman/Wikimedia Commons

Mundialmente reconhecido como o criador da lógica paraconsistente – que, diferente da lógica tradicional, introduz a contradição no pensamento lógico -, o professor Newton da Costa morreu nesta terça-feira, dia 16, aos 94 anos. Docente aposentado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Newton da Costa nasceu em Curitiba (PR), em 1929, e se formou em Engenharia Civil e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde tornou-se doutor e deu aulas durante 14 anos. Lecionou também na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atuou como professor visitante em universidades dos Estados Unidos, França, Itália e Austrália, entre outros países. Publicou mais de 150 artigos e livros, entre eles Sistemas Formais Inconsistentes – sua tese de doutorado, lançada em 1963 pela UFPR, primeira divulgação da lógica paraconsistente -, Lógica Indutiva e Probabilidade (Hucitec/Edusp) e O Conhecimento Científico (Discurso Editorial).

“Eu vi que havia algumas contradições na ciência, mas todo mundo evitava a contradição”, diz Newton da Costa no documentário Espírito de Contradição, filme dirigido por Fernando Severo e lançado em 2019, que aborda a vida e a obra do professor. Citando o matemático alemão David Hilbert (1862-1943) – fundador do formalismo na matemática, para quem “existência na matemática significa consistência”, ou seja, ausência de contradição -, ele explica no filme o que o levou a formular a lógica paraconsistente, hoje estudada nos principais centros de pesquisa em lógica do mundo. “Eu resolvi fazer a coisa ao contrário: uma matemática com contradições. Existência em matemática significa qualquer outra coisa menos ausência de contradição. Nos confins da matemática começam a aparecer contradições. Sempre há problemas.”

Newton da Costa em 2019 - Foto: Leonardo Bettinelli/Sucom-UFPR

No documentário, Newton da Costa destaca que a lógica paraconsistente pode ser aplicada a várias áreas do conhecimento, desde a física e a mecânica quântica até a economia e a filosofia. No que se refere à filosofia, o professor cita como exemplo a dialética marxista. Como ele afirma, o filósofo da ciência austríaco Karl Popper (1902-1994) considerava a dialética marxista impossível, porque a sua lógica, que envolve contradições, não é a lógica clássica, que é isenta de contradições. “O que eu fiz, em parceria com o professor norte-americano Robert Wolf, foi exatamente o seguinte: mostrar que é possível, usando uma lógica paraconsistente, reconstruir a dialética”, destaca o professor. “A dialética marxista pode ser fundamentada numa lógica paraconsistente. Ela me dá as melhores fundamentações da dialética, de tal forma que a objeção de Popper não se aplica”. 

Ao falar sobre ciência e conhecimento, Newton da Costa explica o conceito de “quase verdade”, que ele desenvolveu e também se tornou internacionalmente famoso. Como o professor afirma, desde os filósofos da Grécia antiga, conhecimento é definido como uma “crença verdadeira”. Mas, tendo em vista que a ciência não é definitiva e está sempre em desenvolvimento, seria melhor – propõe – dizer que o conhecimento é uma crença quase verdadeira. “Isso dá mais conta do que a gente entende como conhecimento científico”, acrescenta. “Foi onde eu cheguei após anos e anos de pesquisa, a definição de conhecimento que eu queria quando eu tinha 15 anos.”

O nome “lógica paraconsistente” foi sugerido pelo filósofo peruano Francisco Miró Quesada (1918-2019), como revela Newton da Costa em Espírito de Contradição. O professor escreveu para o filósofo pedindo para que ele, “com sua grande cultura”, nomeasse a nova ciência. Inicialmente Quesada sugeriu o nome “metaconsistente”, indicando uma lógica “além da consistência”, e depois citou “paraconsistente”, “ao lado” da consistência, nome preferido por Newton da Costa. “Ela não destrói a lógica tradicional, que é a lógica da consistência. Ela está ao lado dela, assim como a geometria não euclidiana está ao lado da geometria euclidiana, e não a destrói”, continua Newton da Costa. “Numa questão de meses, o nome ‘paraconsistente’ deu a volta ao mundo”.

O documentário Espírito de Contradição, dirigido por Fernando Severo, que aborda a vida e a obra do professor Newton da Costa, está disponível na plataforma YouTube.

Departamento de Filosofia da USP lamenta a perda do professor

O Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP lamentou a morte do professor Newton da Costa em nota assinada pelo professor Edelcio Gonçalves de Souza. Leia a seguir a íntegra da nota.  

Perdemos no dia de hoje o Professor Newton Carneiro Affonso da Costa, titular aposentado do Departamento de Filosofia desta Faculdade. Não é fácil avaliar a estatura intelectual desse homem que foi o nome mais destacado da área de lógica e filosofia em nosso País. Engenheiro e matemático de formação, logo interessou-se por lógica e filosofia da ciência e nos deixou, pelo menos, três grandes contribuições nessa grande área de conhecimento. Foi o principal edificador do que é conhecido como os sistemas lógicos paraconsistentes, que rapidamente lhe deram fama mundial e colocaram o Brasil no foco dessa disciplina, com proliferação de estudos em praticamente todos os continentes. Construiu a noção de quase-verdade, que lhe permitiu desenvolver um conceito novo de conhecimento científico, utilizando uma versão mais geral de estruturas parciais aplicadas à ciência. Resolveu alguns problemas relacionados aos fundamentos da física, estendendo os resultados de incompletude e indecidibilidade para essa disciplina. Enfim, essa é apenas uma pequena amostra do impacto de sua obra para o conhecimento humano. Recebeu inúmeras honrarias durante sua vida e, apenas para citar uma delas, foi o primeiro brasileiro membro, eleito por unanimidade, do Institut International de Philosophie, sediado em Paris.

Conheci o Professor Newton em 1989, no último semestre de minha graduação em Filosofia. Tive uma identificação imediata com seus interesses em lógica e filosofia da ciência e também o prazer e a honra de tê-lo como orientador em meus estudos de mestrado e doutorado. Sua personalidade agregadora conseguia atrair pessoas das mais diversas áreas do conhecimento, formando, em torno de si, um grupo de estudantes que se mantinha unido tanto pelas afinidades intelectuais quanto, e acima de tudo, pelo entusiasmo contagiante de seu mentor. Sua irreverência era externada principalmente em suas aulas, insistindo sempre que o que mais importava era assimilar os conceitos e resultados principais, sem se ater a detalhes técnicos, que dizia que podíamos aprender sozinhos lendo os livros.

Conviver todos esses anos com o professor Newton, desfrutar de sua companhia em sala de aula, encontros científicos, almoços e cafés me fez entender um pouco mais da vida, do que é a atividade científica, do meu papel como professor e, por que não dizer, de mim mesmo.

O Departamento e a Faculdade perdem um de seus maiores intelectuais; eu, um grande amigo e uma de minhas referências.
Adeus, meu querido mestre!

Prof. Dr. Edelcio Gonçalves de Souza

Departamento de Filosofia | FFLCH-USP

17/04/2024


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