“A academia brasileira, entendida como formadora, mantenedora e precursora da ciência, inclusive a aqui formada na Universidade de São Paulo, é reflexo de um antigo e conhecido projeto de exclusão material e intelectual das produções negras. Em âmbito acadêmico, por muitos anos, embranqueceu-se diversas personalidades, a fim de dar-lhes legitimidade, como Machado de Assis, e louvou-se racistas, como Gilberto Freyre e Monteiro Lobato. Vale lembrar aqui o doloroso processo de adesão das cotas raciais nas universidades públicas, sendo a USP a última das grandes instituições a aderir ao regime de cotas para pretos, pardos e indígenas, apesar de ter sido berço de grandes discussões. Situação conflituosa até hoje.”
É com esse comentário incisivo e provocativo que começa a quinta edição do Boletim 3×22, dedicada ao tema Quilombismos. Noção cunhada pelo professor, dramaturgo, diretor e ativista político Abdias do Nascimento, o quilombismo propõe a reflexão e a prática de formas de produção da vida nas comunidades negras a partir de experiências e referências negras.
A publicação é uma iniciativa da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e faz parte do projeto 3 Vezes 22. Desde 2017, seminários, curadorias e publicações organizados pela BBM instigam o pensamento em torno de três marcos históricos do Brasil: a Independência de 1822, a Semana de Arte Moderna de 1922 e o Bicentenário da Independência, em 2022.
“O ponto de partida do projeto foi colocar o cruzamento dessas três datas simbólicas para refletir os caminhos percorridos por nós como país”, comenta Alexandre Macchione Saes, coordenador do boletim e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP.
Nesta quinta edição, realizada com maioria expressiva de colaboradores negros, juntam-se professores, estudantes, artistas e ativistas para discutir de maneira polivalente a questão negra.
O professor Mário Augusto Medeiros da Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unicamp), abre a publicação sendo entrevistado sobre literaturas negras e periféricas. Entre ponderações sobre o lugar ocupado – e muitas vezes apagado – do negro na literatura, seja como autor ou personagem, o professor tece reflexões mais amplas sobre o País.
“Se há uma ‘identidade brasileira’ é a de uma sociedade desigual, racista, moderna e cheia de problemas para resolver com relação à sua modernidade desigual, racista e capitalista”, afirma Silva na entrevista. “Nada no sentido de ‘o brasileiro é isso ou aquilo, assim ou assado’. O debate identitário nessas bases é uma espécie de Retrato de Dorian Gray mal formulado, sociologicamente colocando o que importa debaixo dos panos”, complementa, citando a obra do escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900), em que o personagem principal vende a alma para que seu retrato – e não ele – envelheça e se corrompa com o tempo.
A artista visual e professora Rosana Paulino, doutora pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, é outra entrevistada no Boletim 3×22. Numa conversa sobre arte e história, Rosana aborda questões artísticas à luz do contexto nacional. “No Brasil, acho que nós damos muito pouco valor ao poder da imagem, somos muito ingênuos em relação ao poder da imagem”, declara a artista na entrevista.
Para Rosana, muito do preconceito surge através de imagens, ou da falta delas. A artista cita imagens subalternizadas da população negra na televisão como exemplo dessa dinâmica. “Posso criar toda uma gama de estereótipos e preconceitos em cima de uma população através de esta estar ou não estar na imagem”, problematiza.
Ainda no campo das artes, o dramaturgo, encenador e diretor da Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, José Fernando Peixoto de Azevedo, debate em mais uma entrevista o teatro negro, pensando suas funções e possibilidades. “O teatro negro, em geral, não é um teatro que ‘leva’ consciência às pessoas, antes, ele é um teatro que emerge precisamente no processo de politização, e assim participa dessa luta, forjando meios, práticas, técnicas, argumentos, formas para elaboração dessa experiência”, afirma o professor.
Sobre vozes e espaços
De acordo com Saes, a proposta desta quinta edição do Boletim 3×22 é abrir espaço para vozes menos valorizadas e menos presentes na narrativa de País construída ao longo destes quase 200 anos. Uma iniciativa que já aparecia no número anterior da publicação, dedicada às pluralidades indígenas.
“A ideia é provocar, no sentido de olhar nosso passado e entender o que há de continuidade em vozes que foram renegadas e ainda hoje são renegadas. E tentar abrir espaço para incorporar essas vozes e novas reflexões de País”, explica o coordenador do boletim.
A curadoria da edição ficou aos cuidados dos estudantes de graduação Lucas Fernandes e Rafael Pedro, bolsistas da BBM. Conforme explica Saes, os dois estudantes, negros, foram responsáveis por estruturar o eixo da publicação e procurar os colaboradores. “É justamente a construção por quem tem que assumir a discussão”, comenta Saes. “Pessoas que têm se dedicado e estudado esses temas, que têm se envolvido politicamente.”
Dentre as outras contribuições da publicação, há ainda um texto da doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Cláudia Rosalina Adão sobre a relação entre cidade, extermínio e as segregações urbana e racial; uma entrevista com o youtuber e estudante de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Thiago Torres sobre a universalidade do acesso ao ensino público superior; e uma entrevista com a artista multimídia Linn da Quebrada, na qual ela reflete sobre “novas formas de ligação, lirismo e libertação através de novas e velhas linguagens, línguas e literaturas”, conforme anunciam os curadores no texto de apresentação da publicação.
Projeto busca discutir ideia de País moderno
Com tratamento gráfico de alto nível e temas agudos, a proposta do Boletim 3×22 se relaciona com a Independência, com ideias de nação e soberania e com a concepção do que seria um Brasil moderno.
“Essa ideia de refletir sobre o que somos e os projetos de futuro perdidos é importante para reconstruir uma ideia de futuro”, pondera o coordenador da publicação, Alexandre Macchione Saes. “Pensar o que 2022 pode nos indicar sobre um país que precisa efetivamente ser repensado. Essa é a provocação que o projeto tenta trazer.”
Apesar de a coordenação do projeto estar nas mãos de Saes, são estudantes de graduação, bolsistas da BBM, que produzem o boletim. Eles se revezam na curadoria das edições e se ocupam da busca por colaboradores, das entrevistas e do tratamento gráfico da publicação.
O número de estreia, com o tema Manifesto, apresentou o projeto, contextualizando a Independência do Brasil e a Semana de 22 e discutindo os manifestos lançados ao redor dessas datas. Já a edição seguinte se dedicou às concepções de nacionalidade, enquanto o terceiro volume tratou de revoluções. O número 4 deu voz às pluralidades indígenas, trazendo entrevistas com lideranças como Ailton Krenak e Sonia Guajajara. O próximo boletim, previsto para novembro, abordará a questão de gênero, segundo Saes.
O coordenador indica que uma das propostas da publicação, pensada em um formato dinâmico e atraente, é também atingir públicos externos à Universidade. “O desafio atual é conseguir alcançar alunos do ensino médio que eventualmente tenham interesse. Esse também é um dos grandes objetivos do projeto, sair um pouco dos muros da Universidade”, explica Saes.