Gramática com sabor: “vende frango-se” e uma possível representação das passivas sintéticas no português popular

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH-USP

 Publicado: 10/01/2025 às 15:55
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Entre placas de mercados e anúncios improvisados, as frases “vende frango-se” e “forra banco-se” surgem como exemplos fascinantes de como a linguagem pode se adaptar às necessidades práticas do cotidiano. O deslocamento do “-se” para depois do sujeito paciente, embora desafie as regras da gramática padrão, cumpre com a missão essencial da linguagem: comunicar. Mas o que essa inversão revela? Mais do que um simples “erro gramatical”, essa construção é, na verdade, um reflexo de criatividade linguística e funcionalidade.

O frango em foco: a ordem que o texto serve

Na gramática normativa, a partícula “-se” deve estar diretamente conectada ao verbo, como em “vende-se frango”. Essa configuração caracteriza a voz passiva sintética no português, em que o verbo e o pronome (no caso, “vende-se”) formam uma unidade gramatical que expressa uma ação sem agente explícito – na qual o sujeito (no exemplo, “frango”) é, semanticamente, paciente da ação. Na construção “vende frango-se”, essa unidade é rompida, com o sujeito paciente, “frango”, deslocado para uma posição imediatamente após o verbo.

Esse deslocamento serve a uma função pragmática clara: prioriza o elemento a ser vendido como central da mensagem, conferindo-lhe maior visibilidade e destaque. A estrutura é particularmente eficaz em contextos informais, como anúncios de venda, em que a clareza e a rapidez da comunicação são essenciais. Apesar de se afastar da norma tradicional, a frase mantém a impessoalidade característica da voz passiva por meio da partícula “-se”, que continua a desempenhar sua função gramatical.

Embora a construção seja funcional no contexto específico, é importante observar que ela representa uma adaptação que rompe com a sequência esperada da voz passiva sintética. Essa inversão é atípica em registros formais e compromete sua aceitabilidade, em que a ordem normativa “verbo-se” auxilia na decodificação mais sistemática da mensagem. No entanto, em cartazes informais, essa inversão emergente cumpre sua função comunicativa ao destacar o elemento de maior interesse: o produto ou serviço oferecido.

Portanto, a frase “vende frango-se” demonstra como a organização sintática pode ser ajustada para atender a demandas pragmáticas específicas, sem comprometer a funcionalidade ou a clareza, desde que o contexto seja apropriado. Trata-se de um exemplo de como o uso da língua pode flexibilizar-se para alcançar objetivos comunicativos específicos, ainda que se afaste da norma-padrão.

Passiva sintética: um item não tão vendável

Por trás dessa inversão está uma questão ainda mais interessante: a voz passiva sintética, usada em “vende-se frango”, não ser uma estrutura produtiva na língua falada. Longe dos anúncios comerciais (“aluga-se”, “compra-se” etc.), ela soa artificial, distante, e tende a ser substituída na fala cotidiana por formas mais naturais aos falantes de português brasileiro, como “vende frango aqui ou até “tem frango pra vender. Essa preferência por construções diretas pode explicar por que, em contextos informais de escrita, o uso da norma padrão se desdobra em adaptações criativas.

A dificuldade em internalizar a passiva sintética na fala pode ser um dos motivos pelos quais sua aplicação na escrita informal é frequentemente ajustada. Nesse caso, “vende frango-se” não seria um “erro”, mas uma adaptação da língua às formas mais intuitivas e funcionais de comunicação. Isso sugere que a variante culta pode estar perdendo vitalidade em contextos práticos, afinal, a norma não é um objetivo em si mesma, mas um conjunto de ferramentas que, aqui, cede espaço à criatividade.

Frango no poder: a norma que SE reinvente

A norma gramatical pode até ser uma estrada asfaltada, mas a língua popular prefere pegar atalhos. Enquanto as regras tradicionalistas insistem na “correção”, a fala das ruas faz o que precisa ser feito: comunica-se, funciona e segue em frente.

Lígia Negri, em Quando o sujeito indetermina o sujeito”, reforça que a norma gramatical não é neutra; ela é uma construção histórica e política que reflete interesses específicos e muitas vezes exclui formas de expressão populares. “Vende frango-se” nos lembra que, em seu uso cotidiano, a língua não pede licença para existir: ela se molda às necessidades e às intenções de seus falantes.

No fim das contas, “vende frango-se” é mais do que uma frase curiosa ou um exemplo de gramática alternativa. É uma celebração da língua como um organismo vivo, flexível e profundamente humano. Ao desafiar a norma padrão, ela nos convida a repensar o que é considerado “certo” ou “errado” na linguagem e a reconhecer que as regras existem para servir à comunicação, e não o contrário.

Entre o rigor da gramática e a simplicidade das placas improvisadas, fica claro que a criatividade é o que mantém a língua vibrante. O frango vendido na esquina e a estrutura que o anuncia são, juntos, um lembrete de que a verdadeira riqueza linguística está na diversidade – e que a norma é apenas uma das muitas possibilidades da linguagem.

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