Com as Congadas, catolicismo negro resiste às tensões com a Igreja

Pesquisa descreve festas populares como formas de resistência dos afrodescendentes cujas origens remontam ao período colonial

 Publicado: 08/01/2025 às 17:24

Texto: Isabela Nahas*
Arte: Diego Facundini**

Com as Congadas, catolicismo negro resiste às tensões com a Igreja

Pesquisa descreve festas populares como formas de resistência dos afrodescendentes cujas origens remontam ao período colonial

 Publicado: 08/01/2025 às 17:24

Texto: Isabela Nahas*
Arte: Diego Facundini**

Festa de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte, no bairro da Nova Gameleira, em 2006. No centro, está a Guarda de Moçambique da Nova Gameleira - Foto: Paulo Pereira

As Congadas são festas religiosas afro-brasileiras realizadas em diversas partes do País. Elas nasceram de um processo de africanização do catolicismo trazido pelos portugueses e refletem valores dos povos africanos que foram escravizados no Brasil. Segundo uma pesquisa de mestrado do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, a relação da Igreja Católica com as festas do cristianismo negro até hoje é tensa. O autor da pesquisa afirma que esse conflito se originou no período colonial, com as irmandades negras, e permanece atualmente no reconhecimento limitado das Congadas como expressões da religião. 

“Tem várias tensões, de vários tipos. Quem vai dominar a festa? Um padre chega e fala que vocês não podem fazer desse jeito, que essa Congada é cultura, religião é com a Igreja. Eles dessacralizam a religiosidade da Congada”, diz o pesquisador Luiz Alfredo Coutinho Souto, que utiliza o nome artístico Alfredo Bello.

Músico, produtor e pesquisador de expressões tradicionais brasileiras, Alfredo Bello viajou pelo Brasil de norte a sul, participando dessas celebrações, que descreveu em sua dissertação de mestrado, intitulada Só o Rosário Nos Une: uma descrição das Congadas brasileiras. A pesquisa teve orientação do professor Walter Garcia, no Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras.

Alfredo Bello é um homem de meia idade, que usa um corte de cabelo rente à cabeça.

Luiz Alfredo Coutinho Souto atende pelo nome artístico Alfredo Bello - Foto: CV Lattes

Em suas viagens, Bello encontrou festas católicas negras desde o Pará até o Rio Grande do Sul. Ele percebeu semelhanças entre as diversas formas de comemoração do catolicismo negro e optou por identificar essas festas como Congadas. “Eu estou trazendo, neste trabalho, essa dimensão de que elas existem no País inteiro. O que eu fiz é uma descrição muito simples para o que realmente essas práticas culturais são. Elas são muito maiores”, explica.

Segundo o pesquisador, a Igreja dissemina a ideia de que as Congadas não são sagradas, mas sim culturais, e que a verdadeira religião está nas missas. No entanto, no catolicismo negro, a celebração não está separada da religiosidade. Bello chama isso de africanização: uma incorporação de elementos do cristianismo português, imposto pelos colonizadores, na religiosidade africana. A africanização é um conceito diferente do sincretismo religioso e também pode ser identificada no catolicismo popular.

As Congadas como forma de devoção religiosa

Por meio da oralidade, as festas religiosas passaram de geração para geração, até chegarem aos dias de hoje. Apesar de haver diferenças regionais, a pesquisa mostra que a ancestralidade norteia os ritos e que alguns elementos se repetem em diferentes Estados: música, dança e uma noção de tempo não linear. As músicas e as danças falam dos santos de devoção, dos ancestrais, histórias do passado e projeções para o futuro. Qualquer pessoa pode participar, basta comparecer.

As Congadas acontecem na data que a comunidade define. Elas também têm como elemento importante a alimentação. O momento de culto possui o que a pesquisa chama de “fartura temporária” em muitos locais, com comidas para todos os presentes. 

Participantes de congada se reúnem em volta de uma longa mesa com comidas e garrafas de refrigerante

Congos da Congada de Niquelândia, em Goiás, durante almoço da Festa de Santa Efigênia em 2007 - Foto: Alfredo Bello

Levantadas como estandartes pela comunidade que organiza a festa, as bandeiras também são símbolos recorrentes. Bordadas à mão com representações do santo de devoção, geralmente elas são conduzidas à frente do grupo e passam por entre os participantes, que as beijam em busca de bênção. Em cada local, há diferenças na forma como são hasteadas, na escrita ou no santo representado.

A devoção aos santos é um elemento central dos ritos. Alfredo Bello considera a Nossa Senhora do Rosário como a principal santa cultuada nas Congadas. A presença da cultura de promessa à santa é responsável por manter a participação de várias pessoas na celebração. 

Participantes de congada desfilam na rua, vestidos com chapéus e camisas amarelas com franjas

Congada em Catalão, município de Goiás, em 2014, com um palco no fundo para onde foram conduzidos os reis perpétuos, os reis festeiros e as coroas - Foto: Alfredo Bello

A promessa tem ligação também com o catolicismo popular e uma pessoalidade característica do cristianismo afro-brasileiro. “[As promessas] são coisas em que você estabelece relações diretas entre você e o mundo espiritual, sem precisar do padre ou de outra pessoa. Então, a promessa está muito ligada a essa devoção, essa ligação pessoal”, disse Bello.

As rainhas e os reis congos

A coroação das rainhas e dos reis é o momento mais importante das Congadas. Os reis e rainhas podem ser lideranças locais ou pessoas que estão pagando promessas. Os reis festeiros ficam um ano ou mais no cargo, dependendo da promessa feita. Já os reis perpétuos, lideranças espirituais, devem permanecer a vida inteira.

A Rainha Conga, perpétua, é geralmente a que comanda os ritos, que falam de histórias do período colonial. Enquanto o Rei Congo representa aquele que incorporou o cristianismo, ela simboliza a resistência contra o império português. 

No livro Afrografias da memória: o reinado do Rosário do Jatobá, a poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins afirma que “a própria representação da rainha ginga (…) atesta essa natureza guerreira dos congados, como foco de resistência e de reelaboração religiosa, reencenando batalhas que a célebre rainha angolana Nzinga Mbandi arrastou contra o império português no século 17”.

A coroa representa o poder, Majestade! Autoridade! Com a coroa na cabeça eu sou a autoridade máxima.”

Futuro e passado nas Congadas

Crianças participam de congada junto com os adultos

Guardas de Moçambique da Nova Gameleira e de Nova Granada, em Belo Horizonte, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, no bairro da Nova Gameleira, em 2006 - Foto: Paulo Pereira

A tradição das Congadas é legado das irmandades negras, as primeiras associações religiosas permitidas por lei às pessoas negras no Brasil. Criadas por essa população em busca da participação religiosa, as irmandades eram leigas, ou seja, não pertenciam à hierarquia da Igreja. Isso dava a elas certa liberdade, o que permitiu que houvesse a africanização do catolicismo.

Ao perceber que esse afastamento diminuía o controle que a Igreja tinha sob as uniões de origem africana, a partir do fim do século 19, as lideranças cristãs brancas passaram a defender que essas instituições não fossem mais autônomas. Por isso, quase todas as irmandades foram fechadas no início do século 20. Apesar do combate às comemorações, elas continuaram existindo.

Nas festividades do catolicismo negro, o tempo não corre de forma linear, sem hora certa para acabar. As músicas cantadas e as bandeiras hasteadas não seguem um cronograma rígido. Bello comenta que essa expressão é encontrada também em religiões de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé.

Ele diz que, em suas viagens, percebeu o tempo como espiralar, um conceito criado por Leda Martins. “É um tempo que se conecta com o passado e também é um projeto para o futuro. São valores que estão projetando e propondo uma sociedade mais solidária e mais igualitária, de alguma forma”, afirma o pesquisador.

Em algumas cidades, a Congada é o evento mais importante do ano. Alfredo Bello vê esses ritos como formas de resistência das práticas africanas ao projeto colonial, que escravizou populações negras e as tirou de seus territórios. “Eu vejo por tudo isso que elas estão incomodando uma ordem, porque estão propondo alguma outra coisa. Elas têm um tipo de religiosidade que é muito participativo e, ao mesmo tempo, é muito inclusivo”, complementa.

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado

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