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Nus e tóxicos, Adolfo e Evelyn chegam ao mundo em espasmos grotescos. A tonalidade doentia e corrosiva de suas epidermes anuncia que a graça divina desceu ao paraíso por caminhos tortos. Quando a famigerada maçã chega às bocas, o resultado da tentação é um constrangimento que traz à cabeça a imagem de um pós-coito azedo. Junto, vem a conta pela curiosidade transgressora: a condenação perpétua ao trabalho.
Estamos no século 21, contudo. Substituem-se enxadas e carros de boi, rebanhos e hortaliças por desemprego, carreiras autônomas, perda de direitos trabalhistas, empreendedores de si mesmos. A forma de pagar o pecado original se transforma e cintila sutileza, mas o couro é esfolado do mesmo jeito.
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Com esse enredo, a peça teatral Do Pó ao Pó atualiza o mito bíblico através das inquietações da juventude na fronteira com a vida adulta. Trabalho, família, filhos, consumismo e a influência das tecnologias são problematizados pelo olhar de quem fita tudo isso se avolumando no horizonte e servem de tempero para a montagem do grupo Teatro da Fronteira, que entra em cartaz a partir desta terça-feira, dia 11, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
“Nós começamos com uma pergunta: é possível encontrar esperança numa época de perpetuação do fim, em que estamos sempre na iminência de algo ser destruído?”, explica o diretor Douglas Vendramini. Para escavar respostas, o grupo buscou os escritos do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (Sociedade do cansaço, Psicopolítica).
Nas reflexões de Han, vivemos em uma sociedade do desempenho, que vende a ilusão de que podemos tudo e, por isso, produz indivíduos depressivos e fracassados. Para o filósofo, a submissão ao patrão deu lugar à exploração por si mesmo, uma cobrança de sucesso que se traduz em patologias neuronais como depressão, hiperatividade, síndrome de Burnout e transtornos de déficit de atenção.
A peça elabora esses temas colocando o casal primevo, contemporizados para Adolfo e Evelyn, na busca por trabalho em um mundo de empreendedorismo, reality shows e autoajuda. Um programa de TV explora a necessidade de emprego, um líder motivacional inspira o touro interior, metáfora da competitividade desprovida de humanidade. Na peregrinação pelo fruto conquistado com o suor do próprio rosto, Adolfo e Evelyn vão paulatinamente tombando à frustração e à impotência em um mundo no qual ninguém se importa com ninguém.
Segundo trabalho do Teatro da Fronteira, Do Pó ao Pó integra o projeto de conclusão de curso de Vendramini, estudante de Licenciatura em Artes Cênicas da ECA. “É uma pesquisa sobre dispositivos pedagógicos dentro de um processo colaborativo, que é um tipo específico de criação teatral, no qual as funções – cenografia, iluminação, atuação, direção – não são subordinadas entre si”, explica. “Todo mundo é autor da obra, embora cada um assine sua função.”
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Para Vendramini, a descoberta do processo colaborativo, que no Brasil tem o Teatro da Vertigem e o Grupo Galpão como alguns de seus expoentes, revelou um terreno arenoso, de trabalho lento na sala de ensaio. “Às vezes, mais se discute do que se realiza”, comenta. Contudo, a forma também revelou surpresas ao diretor, como o desenvolvimento musical dos atores. Sem familiaridade com o canto, o elenco, composto também de estudantes das Artes Cênicas da ECA, propôs investigar esse campo, com resultados positivos. “Os atores foram adentrando essa área, que eu considero, agora, uma das mais bem resolvidas do espetáculo”, conclui.
A montagem Do Pó ao Pó, do Teatro da Fronteira, acontece em dezembro, nos dias 11, 12 e 13, às 20 horas, nos dias 14 e 15, às 19 horas, e dia 16, às 17 horas. Todas as apresentações são gratuitas. O Departamento de Artes Cênicas da ECA fica na Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 433, prédio 7, Cidade Universitária, em São Paulo.