Neste centenário do nascimento de Elizeth Cardoso, os sites, jornais, rádios, revistas e TVs certamente estão prestando a devida homenagem à cantora que ficou conhecida como “Divina”. Exaltando sua voz, que ia de graves a agudos com a mesma suavidade, vão lembrar que ela nasceu em 16 de julho de 1920, no Rio de Janeiro, e que, em agosto de 1936, aos 16 anos, faria sua primeira apresentação profissional, participando do programa Suburbano na Rádio Guanabara por indicação de Jacob do Bandolim.
É possível que resgatem sua infância e juventude pobre e todas as dificuldades decorrentes de ser uma mulher negra nas primeiras décadas dos século 20. Dificuldades como a de ter que deixar a escola aos 10 anos, trabalhar em ofícios diversos como o de vendedora, operária e acompanhante de dança – sim, essa profissão existia e as moças comprovavam cada música dançada com os clientes por meio dos furos feitos em seus cartões.
Tomara que, por isso tudo, recordem uma de suas gravações em TV na qual ela canta Se as estrelas falassem. Ao seu redor, músicos como Martinho da Vila e Dona Ivone Lara acompanham-na, eletrizados, suspensos de vê-la percorrer os versos que brotam milagrosamente da emoção embargada, fluindo como que de um poço de dor onde o choro vai costurando a afinação perfeita de uma voz em lágrimas contidas.
Estrelas vivem no céu sozinhas
Sem amor, minha vida também vive só
Queria saber se as estrelas também
Sofrem assim como eu por alguém
Queria saber se estrelas
Amam também como eu
Segredos eu diria às estrelas
Minha vida, uma história demais infeliz
Se eu pudesse ir até às estrelas
Saberia então se elas amam ou não
Estrela, eu nunca fui feliz.
Somente uma vida cheia de dores discretamente vividas poderia revelar a interpretação desses versos como Elizeth Cardoso o fez. Ela sabia bem o que cantava, afinal essa é sua composição. Consta que a única.
As reportagens e artigos sobre Elizeth Cardoso, nesse centenário, possivelmente se baseiam, em grande parte, no cativante livro escrito pelo jornalista Sérgio Cabral sobre ela. Ali, o autor detalha a trajetória carregada de talento e humildade, elegância e simplicidade, essas simbioses tão peculiares.
O livro destaca, por exemplo, sua rotina nas noites do Dancing Avenida. Ela já se apresentava em rádios diversas, mas o dinheiro era pouco para cuidar de si e do filho pequeno. O aparelho de picotar furava seu cartão bem menos que os das demais moças. Sérgio Cabral que, além de escrever o livro sobre Elizeth, foi também seu amigo, pergunta-se sobre a explicação desse mistério. Afinal, além de atraente, era boa dançarina, o que o próprio biógrafo da cantora comprovou algumas vezes dançando com ela.
Talvez a explicação esteja num depoimento dado pelo antigo locutor e apresentador Blota Júnior. Ele conheceu Elizeth no Salão Verde, um dancing para o qual a moça tinha sido contratada em São Paulo. Ficava no subsolo do Edifício Martinelli. Junto com Blota, iam outros três funcionários da Rádio Cruzeiro do Sul: os produtores Vicente Leporace e Egas Muniz, além de um humorista que ainda não fizera sucesso como compositor, o Adoniran Barbosa. Naqueles anos 40, ela já dividia a dança com o canto e trouxe surpresa aos habituais frequentadores do Salão Verde com sua voz. Vejamos o que contou Blota Júnior a Sérgio Cabral e que, de alguma forma, possa indicar os motivos de ela ser menos requisitada para dançar.
Lembro-me muito bem da minha surpresa ao ver aquela morena cantando divinamente bem. Ela já era divina, sem dúvida nenhuma. Chamou-me a atenção ainda por outros motivos. Percebi que dançava muito pouco e que preferia cantar. Percebi também que estava sempre distante das rodas das dançarinas, daquelas conversas francas e alegres. Era uma figura puxada a triste.
Os motivos dessa tristeza podem ser buscados em inferências sobre passagens da sua vida. Dificilmente alguém encontrará registro da própria Elizeth lamentando alguma desventura. Melhor do que isso é ouvir seu canto, como na interpretação da canção Se as estrelas falassem, há pouco mencionada. Ali, quem assistir ao vídeo indicado, verá que seu modo de sobrepujar o choro se dá por meio do canto… e dos sorrisos.
É esse diálogo entre riso e choro (contido), tristeza e dança, discrição e sucesso estrondoso que tão bem se firmou na vida de Elizeth.
Mas as reportagens e artigos sobre Elizeth Cardoso também trazem, inevitavelmente, a constatação de que ela participou de um dos momentos mais importantes da música popular brasileira: a criação, a fundação, a irrupção – ou seria a erupção – da bossa nova. Foi no disco Canção do Amor Demais, lançado por Elizeth em 1958, que a batida bossa-novística do violão de João Gilberto foi gravada pela primeira vez. A música Chega de Saudade, presente nesse álbum, com composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, seria retomada meses depois no disco solo de João Gilberto, completando de vez a entrada da bossa nova na história cultural brasileira.
Ouça aqui:
Se o disco Canção do Amor Demais certamente consta em todas as matérias e homenagens a Elizeth Cardoso, talvez falte aqui e ali uma menção ao seu registro inicial, de anos antes. O primeiro disco, lançado pela gravadora Star, em 1950, foi recolhido assim que chegou às lojas sob a alegação de problemas técnicos. Mas logo isso seria superado. E mais uma vez o Dancing Avenida teve papel decisivo na vida de Elizeth. Foi lá que o compositor Erasmo Silva a escutou cantando e, impressionado, convenceu o diretor da gravadora Todamérica a ir vê-la. No dia 25 de julho de 1950, Elizeth gravava seu segundo disco, o primeiro no estúdio da Todamérica. No disco constavam duas músicas. A primeira se chamava Complexo, de Wilson Batista e Magno de Oliveira. Foi escolhida como carro-chefe do disco. A segunda, Canção de Amor, de Chocolate e Elano de Paula, teve sérios percalços para ser gravada. Conta Sérgio Cabral que os músicos tiveram grande dificuldade para executar a primeira música e, com o passar das horas, vários deles tiveram que começar a jornada na Rádio Nacional, onde trabalhavam. Com poucos violinistas, foram buscar o saxofonista Zé Bodega para completar o time, ensinando-o a canção no caminho entre a Rádio Tupi, onde ele estava, e o estúdio da gravadora. O músico recém-chegado fez mil maravilhas e compensou as ausências. Quem ouvia as rádios daqueles anos, entre 1950 e 1951, não poderia suspeitar que Canção de Amor era apenas a música lado B do disco. Cada vez mais ganhando os assobios espontâneos nas bocas das pessoas, foi esta música que lhe rendeu convite para trabalhar na Rádio Tupi. E aqui, vamos ler um trecho do que o poeta Vinicius de Moraes escreveu, em 1953, sobre essa gravação:
“Com a sua magistral interpretação de Canção de Amor, um samba com uma linda melodia e uma letra fraca, mas que, na voz dessa grande dama da música popular carioca, conseguiu me revirar completamente. A verdade é que Elizete dava aula de canto no disco em questão e eu me pus a ouvi-la furiosamente, dezenas de vezes por dia. A música me fazia sofrer, me colocava num espaço diferente do mundo, me abraçava como uma mulher, sei lá”.
As TVs devem estar resgatando apresentações de Elizeth Cardoso. Diversas. Mas infelizmente nenhuma terá as imagens em vídeo da mais antológica de todas as suas apresentações. Foi em fevereiro de 1968, num show que reunia, pela primeira vez, duas matrizes da improvisação no Brasil: o choro e o jazz. No lado do choro, Jacob do Bandolim e o Conjunto Época de Ouro. No do jazz, pela via da bossa nova, o Zimbo Trio. E amalgamando as duas vertentes, Elizeth Cardoso. Nessa noite, o Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, abrigou um dos momentos mais históricos da música popular no Brasil.
Segue aqui um trecho do espetáculo, com a interpretação de Barracão, em que Elizeth é acompanhada por Jacob e o Conjunto Época de Ouro, apoiados pelo coro de um público entusiasmado. E, depois, Carolina, incorporando também o Zimbo Trio à execução da música, junto com Jacob. Advertimos ao risco de fortes emoções… as melhores emoções.
Já que estamos nos anos 60, vale a pena retomar uma análise do historiador e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Marcos Napolitano. Ele escreveu um livro chamado Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). Sobre aquela década, Napolitano situa Elizeth Cardoso, especialmente o seu disco Elizete sobe o morro”, de 1965, como uma das iniciativas estético-ideológicas de trabalhar o ideário nacional-popular que orientava a produção cultural do período. O clima de roda de samba do disco em questão buscava trazer à tona o samba dito “autêntico”. O interessante é que o historiador a agrupa com Nara Leão e Elis Regina nessa tendência de valorizar um gênero musical como esforço de incorporar as camadas populares à produção cultural (e política). Se Nara e Elis são mais facilmente associadas a essa guinada estético-ideológica que surge como uma vertente engajada na bossa nova, Elizeth vinha de outro cenário, fortemente ligado ao público pré-bossa nova. Para Napolitano, isso revela que o público mais tradicional começava a se ligar na nova tendência de revalorização do samba marcado, e que os cantores mais antigos sentiam a necessidade de ampliar seu alcance a um público mais jovem, comprador de discos e frequentador de teatros.
Vamos ouvir uma das músicas do disco Elizete sobe o morro. É Luz Negra, de Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso.
Uma constante sobre Elizeth Cardoso são os depoimentos de quem conviveu com ela, invariavelmente encantados por sua simplicidade, gentileza e outros predicados elogiosos. Estes depoimentos, com muito mérito, certamente constam nas diversas homenagens prestadas a ela nesse centenário. Mas não se pense que são apenas protocolares, como pediria a ocasião, frente a um repórter de bloco na mão ou microfone empunhado. Quem teve a oportunidade de lidar com os bastidores, nas conversas em off, confirma os mesmos elogios. O jornalista Sérgio Cabral, em entrevista de 2010 para o programa De lá pra cá, da TV Brasil, vai atropelando as palavras no afã de testemunhar a plenitude da relação dela com as pessoas de seu entorno. “Era uma figura fant!!!… ela convivia maravilhosamente be!… os músicos adoram ela! Os músicos que trabalharam com ela põem a Elizeth em primeiro lugar.” Só assim, desse jeito espontâneo e entusiasmado, para demonstrar o vigor desse carinho que ela espalhava ao redor. Sérgio Cabral, ao falar sobre isso, mostra a exata manifestação das expressões “sem palavras” e “atropelou as palavras”. Um bom motivo o justifica.
E assim seguiu Elizeth: pés no chão, mesmo que tenha sido intérprete das Bachianas nº 5, de Villa-Lobos, nos Teatros Municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro; ou que tenha sido frequentadora da casa da lendária Tia Ciata, por onde os primórdios do samba passaram e deram origem ao primeiro registro fonográfico com essa denominação; ou que tenha sido apelidada de Divina, Enluarada, Maravilhosa e outros tantos adjetivos reverenciosos.
Em todas as reportagens, artigos, crônicas e homenagens há um recorte. Uns darão ênfase às gravações mais antigas, outros à vida amorosa, ou aos encontros e espetáculos históricos. Haverá ainda os que colocam destaque na sua amplitude vocal ou na comovente sobriedade emocionada da intérprete. Mas sempre haverá um final. Sem dúvida são muitos. Alguns fecharão o texto com sua morte em 1990, ou com uma letra emblemática de uma música de seu repertório. Haverá TVs que deixarão sua voz soar enquanto sua imagem sobre o palco vai desvanecendo num fade out, e emissoras de rádio que concluirão com uma de suas entrevistas. Todas serão significativas, belas e vão revelar uma gama de possibilidades que fará jus à amplitude de seu talento. Aqui, vamos acrescentar mais um a esta diversidade de finais possíveis. E será com um trecho escrito por Vinicius de Moraes para a contracapa do disco Canção do Amor Demais, com composições suas em parceria com Tom Jobim e interpretado por Elizeth Cardoso:
Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata.
Elizeth Cardoso grafou seu nome de maneiras diversas durante a vida. Já foi Elizette, Elizete e, a partir da segunda metade da década de 60, passou a assinar Elizeth. O jornalista Sérgio Cabral, que escreveu sua biografia, adotou Elisete. Aqui, usamos a grafia de seus discos mais recentes.