Coleção celebra o "velho-novo Graciliano Ramos"

Com a participação de personalidades como Milton Hatoum, bate-papo na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin marca o lançamento da editora Todavia que adiciona novas camadas à obra do escritor alagoano

 Publicado: 17/04/2024

Texto: Julia Alencar*

Arte: Joyce Tenório**

A coleção busca restituir o último ânimo autoral do escritor - Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Kurt Klagsbrunn/Acervo IEB e Divulgação/Todavia

“Mais do que apenas lançar a coleção, nós queremos promover a discussão entre os palestrantes e o público”, afirma Thiago Mio Salla, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e especialista na obra de Graciliano Ramos, sobre o evento que ocorrerá na quinta-feira, dia 18.  A Coleção Graciliano Ramos – que será inaugurada com a publicação de duas obras clássicas do autor alagoano e um inédito livro infantil – será lançada oficialmente neste dia pela Editora Todavia no Auditório István Jancsó da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, às 19h. Durante o lançamento, acontecerá também um bate-papo com a participação do romancista Milton Hatoum, de Thiago Salla e da jornalista e biógrafa Josélia Aguiar. 

“É um lançamento que pretende enriquecer aquele que participa. Todos os palestrantes são muito versados não apenas na história e obras de Graciliano, mas na própria literatura, e nosso intuito é, para além de homenagear o escritor, falar um pouco sobre o extenso trabalho de edição, reedição e pesquisa empregado para criar essa coleção e todas as novidades que ela traz”, conta Salla, que é o idealizador e organizador da coleção da Todavia, em entrevista ao Jornal da USP. O bate-papo ainda abordará discussões acerca da literatura brasileira, da produção cultural e sua relação com os processos editoriais. Ao fim do evento, haverá uma sessão de autógrafos. 

O bate-papo será aberto à participação do público - Imagem: Divulgação/Editora Todavia
A proposta da editora é publicar de dois a três livros por ano, cobrindo a obra completa do autor - Imagem: Divulgação/Editora Todavia

A coleção

“A ideia é trazer um ‘velho-novo Graciliano’, no sentido de que estamos trabalhando com livros já conhecidos, mas com uma abordagem do ponto de vista editorial que procura trazer inovações, sobretudo no que diz respeito à restituição do texto à última vontade do autor, ou seja, pautada pela fidedignidade ao último ânimo autoral dele e de suas revisões”, explica Salla. A intenção da editora é de publicar cerca de dois a três livros por ano, cobrindo todas as obras do autor e, até o momento, três livros foram publicados: Angústia (1936), Vidas Secas (1938), e Os Filhos da Coruja, um livro infantil inédito do autor, encontrado recentemente nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP) como manuscrito dos anos 1920 sob o pseudônimo J. Calisto.

Os Filhos da Coruja é baseado na fábula O Gavião e a Coruja, do poeta francês Jean de La Fontaine. O enredo é similar em ambas: o gavião e a coruja fazem um pacto de não atacar os filhotes uns dos outros, mas o gavião, confuso pela descrição idealizada que a coruja deu de seus filhotes, acaba descumprindo o combinado. “Diferentemente da original, a fábula de Ramos não tem como moral unicamente a idealização da mãe para seus filhos, tratando a questão por um viés mais amplo, que pode ser aplicado a qualquer situação”, explica Salla. “Assim como a mãe coruja não consegue encontrar defeitos nos seus filhos, um escritor também idealiza sua obra e tem dificuldade de criticá-la, por exemplo. Ramos projeta a questão animal nos humanos, chamando a atenção do leitor para que percebam que nós também somos como a coruja”, afirma o professor da ECA. Thiago Salla ainda conta que a adaptação pode ter sido baseada na própria família de Ramos, uma vez que foi escrita pouco depois do falecimento de sua primeira esposa, que o deixou com três filhos pequenos para cuidar — número emblemático na fábula criada pelo autor de Vidas secas, que, adaptada em livro infantil, foi ilustrada por Gustavo Magalhães.

Thiago Mio Salla, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da USP e estudioso de Graciliano Ramos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

As novidades não se limitam ao livro inédito: tanto Vidas Secas quanto Angústia tiveram adições. Ambas as obras agora contam com notas de rodapé esclarecendo não apenas palavras e expressões, mas o próprio contexto de escrita da obra e referências históricas e espaciais. Outro destaque são os posfácios, nunca antes publicados em livros: em Angústia, o professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017) assina o texto “Notas de Crítica Literária: III”, de 1945; já em Vidas Secas, além de um artigo de Candido, o volume também apesenta um texto do professor Adriano da Gama Kury sobre o processo de escrita do livro. Os posfácios de Candido são um panorama de suas mudanças de opinião acerca da obra de Ramos ao longo do tempo: “Nós recuperamos o que teria sido a impressão a quente de Candido sobre os livros, que ele escreveu logo após a primeira leitura, criticando muito as obras. Essa opinião vai se alterando e amadurecendo à medida que o crítico entende a proposta dos livros, o que fica claro nos posfácios”, conta o professor.

Vidas Secas e Angústia também contam com prefácios escritos pelo próprio Salla, em que busca apresentar aspectos da obra ao mesmo tempo em que os questiona, como a distopia e o tom otimista construídos no final de Vidas Secas. Em Angústia, há ainda a seção Intertexto, que estabelece paralelos entre personagens do enredo e figuras de sua autobiografia Infância (1945), reforçando a ideia de um “velho novo Graciliano” ao explorar novas possibilidades de intertextualidade e interpretação de textos já conhecidos.

O processo de pesquisa e editoração se deu por meio de um esforço para compilar todas as versões dos textos já escritas pelo autor, mapeando não apenas as soluções que foram encontradas ao longo do tempo para problemas em seus textos, mas o próprio modo de criação e a maneira como suas obras vão tomando forma até chegarem às versões conhecidas pelo público. Essas alterações e processo criativo estão inseridas nas edições da coleção, discretas de forma a não truncar a leitura, mas facilmente acessadas por pesquisadores e interessados.

Graciliano Ramos em 1949 - Foto: Kurt Klagsbrunn/Acervo IEB

Graciliano Ramos, antimodernista moderno

“É por meio de seu antimodernismo que Graciliano mostra sua modernidade. Apesar de criticar veementemente a geração de 22, ele reconhece que sua geração só pode se expressar livremente por conta das quebras de paradigmas incitadas por ela”, reflete Salla. Em suas obras, Graciliano Ramos aborda o Brasil por uma perspectiva pouco explorada antes, como um intérprete do País. “Angústia, por exemplo, é um retrato da sociedade brasileira intelectual dos anos 30, que inclusive pode se associar ao crescimento da extrema direita no Brasil atualmente. É com acabamento artístico que Ramos leva o leitor a pensar o Brasil arcaico e como a modernização é modelada a partir de uma burguesia conservadora e da degradação das oligarquias, com um pano de fundo que foge do eixo predominante Rio-São Paulo”, comenta Salla.

Suas obras são emblemáticas para a literatura brasileira, em especial como veículo que coloca o Nordeste em evidência, do ponto de vista de alguém que viveu a realidade da região, e não da forma caricata e estereotipada que muitas vezes ganha espaço na literatura, como explica o professor. A modernidade de Graciliano Ramos também se revela por meio de seu uso do discurso indireto livre, que “esmiuça os pensamentos das personagens e realmente leva o leitor para dentro de sua psique”, diz. Vidas Secas, segundo Thiago Salla, ocupa um espaço muito importante na maquinaria discursiva brasileira, tocando em pontos fundamentais da sociedade brasileira de modo crítico e, ao mesmo tempo, humano, de uma forma pouco feita antes.

As obras Memórias do Cárcere (1953) e S. Bernardo (1934) ainda não foram trabalhadas pela editora, mas também são parte fundamental da literatura e cultura brasileiras, criticando as estruturas sociais e econômicas da época, em um contexto em que cresciam o Estado Novo de Getúlio Vargas e discursos autoritários. O primeiro, publicado postumamente, reconta seu período encarcerado em 1936, após ser acusado de ser um militante comunista e de ter apoiado a Intentona Comunista — uma tentativa de golpe ao governo de Getúlio Vargas em 1935. Já S. Bernardo gira em torno das memórias de Paulo Honório, um dono de fazenda amargurado, explicitando sua trajetória e transição de empregado para empregador. Por meio da narrativa, Ramos pinta um retrato da “desigualdade econômica e social de um país onde a posse de terra é sinônimo de poder absoluto”, conforme a sinopse do livro. Para o bem ou para o mal, quase um século depois, Graciliano continua atual. E isso diz muito, principalmente a respeito do Brasil.

O lançamento da Coleção Graciliano Ramos será realizado dia 18 de abril, quinta-feira, às 19h, no Auditório István Jancsó da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP (Rua da Biblioteca, 21, Cidade Universitária). Entrada grátis.

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg
**Estagiária sob supervisão de Simone Gomes de Sá


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