“Jangadas lipídicas” podem ser a porta de entrada para entender a ação dos remédios antidepressivos – Foto: NIH Image Gallery/Flickr-CC

"Jangadas" nos neurônios são chave para entender ação de antidepressivos

Nível de colesterol na membrana celular determina estrutura e funcionamento de proteína que serve de alvo para antidepressivos

15/03/2021
Por Júlio Bernardes

Regiões especializadas na membrana das células do sistema nervoso, ricas em colesterol e conhecidas como jangadas lipídicas – lipid rafts, em inglês – podem ser a chave para entender a ação dos medicamentos antidepressivos. Em um estudo com participação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, cientistas verificaram que o nível de colesterol nessas regiões da membrana celular determina a estrutura e o funcionamento de um receptor, uma proteína que serve de alvo para os antidepressivos nos neurônios. A pesquisa é descrita em artigo publicado na revista científica Cell.

“Para o estudo foram utilizadas diversas classes de antidepressivos, incluindo drogas clássicas, como a fluoxetina e a imipramina, e os antidepressivos de ação rápida, descobertos mais recentemente, como por exemplo a ketamina”, conta ao Jornal da USP o pesquisador Cassiano Ricardo Alves Faria Diniz, que realiza pós-doutoramento na FMRP e participou do trabalho. “A partir de abordagens in vitro, em laboratório, e in silico, usando simulações computacionais de alta performance, verificou-se que nas jangadas lipídicas os antidepressivos se ligam diretamente ao receptor TRKB, sendo assim capazes de modular a atividade do receptor ao passo que estabilizam a sua estrutura tridimensional.”

“Jangadas lipídicas” podem ser a porta de entrada para entender a ação dos remédios antidepressivos – Imagem: Reprodução

“A proteína TRKB, quando ativada, conduz a uma cascata de vias intracelulares responsáveis, em linhas gerais, pelo refinamento e o reforço de conexões sinápticas, ou seja, entre as células do sistema nervoso”, explica Faria Diniz. “A ação do TRKB regula então a atividade de regiões específicas do sistema nervoso central, como por exemplo o hipocampo e o córtex pré-frontal, que são envolvidas com a modulação das nossas respostas comportamentais ao estresse.”

Os dados obtidos na pesquisa indicam que o TRKB pode assumir diferentes conformações, dependendo da quantidade de colesterol na membrana. “Os antidepressivos, por sua vez, estabilizam a conformação do receptor num estado mais propenso à ativação”, relata o pesquisador. “Observamos experimentalmente que a mesma alteração na região do TRKB que prejudicou a interação deste com a fluoxetina, determinada por simulação computacional, reduziu também a interação do TRKB com vários outros antidepressivos in vitro.

Foto de rosto de homem branco de barba e cabelos escuros, usando óculos e sorrindo

O pesquisador Cassiano Ricardo Alves Faria Diniz – Foto: Arquivo pessoal

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Essa mesma alteração do TRKB, quando presente em camundongos, torna os animais menos responsivos aos antidepressivos, sejam eles de ação rápida ou lenta. “Portanto, os experimentos in vivo [em animais] corroboram os dados in vitro e in silico ao sugerir que, de fato, a potencial ação direta sobre o TRKB é importante para a ação dos antidepressivos”, destaca Cassiano Diniz, “mesmo quando o efeito destes são colocados à prova dentro de organismos biológicos complexos”.

De acordo com o pesquisador da FMRP, acreditava-se que a diferença no mecanismo de ação primário entre drogas clássicas e novas seria a responsável pelas diferenças na latência de efeito, ou seja, no tempo necessário para os efeitos clínicos serem detectados. “O resultado do nosso trabalho nos leva a crer que, além dos mecanismos primários, a atuação dos antidepressivos depende de uma ação direta sobre o TRKB”, ressalta. “A latência para o efeito seria decorrente da demora pelos antidepressivos clássicos, mas não por novos compostos como a ketamina, em atingir concentrações suficientes no sistema nervoso central para agir sobre o TRKB.”

Acredita-se que uma das diferenças entre os antidepressivos tradicionais e os novos está no tempo de latência – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

As conclusões do estudo poderão direcionar o desenvolvimento de novas moléculas capazes de se ligar ao TRKB com maior afinidade, modular sua resposta e ao mesmo tempo serem capazes de ultrapassar rapidamente a barreira hematoencefálica, avalia o pesquisador. A barreira hematoencefálica é uma proteção natural do corpo, espécie de “cordão de isolamento” que impede que vírus, fungos, bactérias e outros corpos estranhos cheguem ao sistema nervoso central.

“Lembrando que milhões de pessoas ao redor do mundo fazem uso diário de antidepressivos, e que essas drogas são usadas no tratamento de diversos distúrbios psiquiátricos, além de serem importantes também para o tratamento de outras doenças, como por exemplo a dor crônica”, afirma. “Assim, compreender melhor o mecanismo de ação destas drogas facilitaria o desenvolvimento de novas moléculas com melhor perfil terapêutico e, portanto, é de grande interesse da clínica médica.”

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O estudo foi liderado por Plínio Casarotto e Caroline Biojone, atualmente contratados como pesquisadores no grupo do professor Eero Castrén, da Universidade de Helsinki (Finlândia), ambos egressos do Departamento de Farmacologia da FMRP e ex-bolsistas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), incluindo um estágio na Universidade de Helsinki pelo programa BEPE. O trabalho contou com a colaboração de Faria Diniz, também do Departamento de Farmacologia da FMRP, quando em estágio pelo programa BEPE (via bolsa de pós-doutorado Fapesp).

Também participaram do estudo pesquisadores das Universidades de Freiburg (Alemanha) e Bergen (Noruega), além do Departamento de Física da Universidade de Helsinki, responsável pela modelagem molecular. O artigo Antidepressant drugs act by directly binding to TRKB neurotrophin receptors foi publicado na revista científica Cell em 4 de março.

Mais informações: e-mail cassiano.diniz@usp.br, com Cassiano Ricardo Alves Faria Diniz


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