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Ideação suicida cresceu na pandemia; mulheres e quem viveu situações adversas na infância foram os mais afetados
Estudo identificou como em maior risco pessoas do sexo feminino, aquelas com transtornos mentais prévios e também as que passaram por eventos adversos quando crianças
Texto: Luiza Caires
Arte: Simone Gomes
Originada em uma interação complexa de fatores biológicos, psicológicos e sociais, a ideação suicida é um dos componentes do espectro da suicidalidade, ocorrendo em estados depressivos de diferentes transtornos mentais – Foto: oodinteractive por Pixabay
A ocorrência de ideação suicida é um entre vários sintomas que podem ser considerados para se avaliar a saúde mental da população durante uma situação como a pandemia. E, para planejar políticas preventivas, mais importante ainda é verificar que características deixam as pessoas vulneráveis.
Assim, dentro de um estudo de longa duração que já acompanha diversos indicadores da saúde dos participantes, os pesquisadores confirmaram que houve, sim, crescimento da ideação suicida no período: ela foi três vezes maior na amostra estudada. Eles também investigaram quais fatores predispuseram a isso.
No grupo estudado, transtornos mentais prévios e ter sofrido um evento adverso na infância, como negligência física e psicológica, foram alguns dos principais preditores da incidência de ideação.
As pessoas do sexo feminino também foram um grupo afetado de maneira mais intensa: mais de 70% das pessoas que passaram a ter ideação suicida no primeiro semestre de 2020 eram mulheres.
O que chama atenção neste dado é que basta ser do sexo feminino para o risco ser maior. “A pessoa não precisa necessariamente ter desenvolvido algum transtorno mental, ter tido um trauma na infância ou ser de uma população mais jovem e mais pobre. Mesmo quando aplicamos ferramentas estatísticas para isolar todas essas variáveis, ser mulher por si só aumentou o risco daquela pessoa ter ideação suicida”, diz o psiquiatra Pedro Bacchi.
Pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e primeiro autor do artigo, ele defende que em épocas como a pandemia as políticas públicas de saúde mental sejam mais direcionadas às mulheres. Estas vivem instabilidade financeira, sendo que já recebem menores salários que homens; ficam ainda mais sobrecarregadas como cuidadoras, incluindo de crianças, que também sofreram muito na pandemia; e são as principais vítimas da violência doméstica, que se aprofunda. Diversos aspectos do machismo diariamente vivenciado não só não deixaram de existir na pandemia, como pioraram.
Em 2020, cerca de uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência, quase metade dentro de casa, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Espectro do suicídio
A ideação suicida compreende pensamentos sobre acabar com a própria vida, que podem ser ativos, com um plano claro para suicídio, ou passivos, com pensamentos sobre desejar morrer. Ela tem origem em “uma interação complexa de fatores biológicos, psicológicos e sociais”.
A ideação é um dos componentes do chamado espectro da suicidalidade que, segundo Bacchi, frequentemente é precedido por um sentimento de desesperança. O espectro inclui ainda pensamento de morte, planejamento suicida e, por fim, a tentativa de suicídio e a morte por suicídio.
A ideação suicida “ocorre em estados depressivos de diferentes transtornos mentais”, e sua transição para a tentativa de suicídio pode ser facilitada pela ocorrência simultânea aos chamados transtornos do impulso, que trazem dificuldade de regulação emocional, ou de outras condições que aumentam o sofrimento, além de ser afetada pelo uso de álcool e por fatores demográficos como idade, gênero e status socioeconômico.
O psiquiatra ressalta que a pesquisa avaliou a incidência, que corresponde ao surgimento do sintoma em pessoas que não tinham relatado ideação anteriormente.
Renda, raça, idade e solidão
Pesquisas feitas nos Estados Unidos mostraram uma forte prevalência da ideação suicida em populações afrodescendentes e de origem na América Latina – Imagem: Pixabay
Nem todos fatores de risco para ideação suicida foram possíveis de serem bem avaliados, neste estudo específico, pelas características da amostra estudada: servidores públicos de vários estratos sociais e seus familiares, com pessoas mais velhas e assalariadas.
Mas outras pesquisas mundiais apontaram como determinantes: 1. a idade, com crianças e jovens sendo muito mais afetados, e 2. a intersecção entre raça (ser de população não branca) e viver com baixa renda, o que pode ser fortemente agravado pela instabilidade financeira. Mais do que a pessoa ganhar pouco, pesa a insegurança: ela não saber se poderá sustentar a si mesmo e à sua família nos dias que estão por vir.
A solidão é um fator que, hoje se sabe, “está para a saúde como um todo, assim como hipertensão, tabagismo e obesidade estão para os ataques cardíacos”, compara Bacchi. Ou seja, ela piora todos os indicadores possíveis de saúde física e mental e, claro, também aumenta o risco de ideação suicida.
Aqui, o senso comum – que diz que estar sozinho não é o mesmo que estar solitário – se confirma: a ocorrência de ideação suicida em quem morava sozinho naquele período não foi significativamente maior na amostra estudada. Mas outros estudos que avaliaram de maneira mais subjetiva a sensação de solidão, independentemente de se viver ou não sozinho fisicamente, a confirmaram como um fator de risco importante para ideação suicida.
Os transtornos mentais aumentaram no início da pandemia?
Ter um sintoma depressivo ou ansioso não é o mesmo que ser diagnosticado com depressão ou ansiedade. Isso é fundamental para entender por que, pelos dados levantados, não podemos afirmar que houve um aumento da prevalência de transtornos mentais na população em geral no primeiro ano da pandemia, que ocorreu, sim, em alguns grupos específicos, como pessoas que já haviam tido transtornos mentais. Outro estudo da mesma equipe com participantes do Elsa-Brasil corrobora isso.
Nele, Pedro Bacchi e colaboradores apontam que “as avaliações conduzidas em todo o mundo foram focadas principalmente nos sintomas e não nos diagnósticos”. Além disso, alguns estudos sobre transtornos usaram amostras com problemas, como a falta de informações sobre o estado mental prévio dos participantes.
Assim, as taxas de suicídio chegaram a diminuir no Brasil e não sofreram mudanças importantes em outros países de baixa e média renda durante o primeiro ano da pandemia (2020), ainda que o estudo atual tenha detectado um aumento expressivo na ideação suicida.
Eventos adversos na infância
Os eventos adversos na infância incluem violência, abuso sexual e psicológico, e negligência, entre outros acontecimentos potencialmente traumatizantes. Eles têm sido continuamente associados às principais causas de problemas de saúde física e mental em adultos no mundo todo, incluindo suicídio.
Esses eventos têm maior conexão com tentativas de suicídio na infância, o que diminui durante adolescência e início da idade adulta. Porém, a associação aumenta novamente na idade adulta tardia, o que pode ser explicado por diferentes fatores, incluindo dimensões biológicas, psiquiátricas, e psicossociais.
Adultos mais velhos em geral têm habilidades de regulação emocional mais desenvolvidas e, portanto, níveis mais altos de bem-estar afetivo. Por outro lado, quem sofreu experiências adversas na infância apresenta menos capacidade de adaptação e habilidades de enfrentamento e resolução de problemas, e parece ser ainda mais reativo a eventos estressantes em idade mais avançada.
Uma limitação desta pesquisa é que ela não incluiu toda a gama de eventos adversos, deixando de fora violência física e abuso sexual. Mesmo assim, foi possível observar um risco aumentado em pessoas que passaram por outros tipos de eventos na infância, como negligência física e afetiva.
“A pessoa que sofreu evento adverso na infância, mesmo depois de adulta, quando vive mudanças tão grandes como as que ocorreram na pandemia, vai ter mais ideação suicida comparada com outras. Isso é realmente um achado do nosso estudo.”
O estudo e outras pesquisas
Parte do Elsa-Brasil, o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o trabalho publicado na Trends in Psychiatry and Psychotherapy investigou a incidência de ideação suicida e seus fatores de risco associados no Estado de São Paulo no início da pandemia de covid-19. Para comparação, foram usados dados de uma avaliação presencial do Elsa-Brasil feita antes da pandemia (2016-2018) e de uma avaliação realizada de maneira on-line durante a pandemia (entre maio e julho de 2020).
A incidência de ideação suicida foi avaliada usando um questionário internacional validado para isso, o Clinical Interview Schedule-Revised (CIS-R). Análises estatísticas foram realizadas considerando as diferentes características sociodemográficas, se houve impacto financeiro familiar significativo durante a pandemia, presença de doenças crônicas e de transtornos mentais anteriores, abuso de álcool, experiências adversas na infância e viver sozinho. Não foram coletadas informações sobre identidade de gênero, somente sexo biológico.
Em geral, os resultados confirmam o que levantaram trabalhos semelhantes ao redor do mundo. Mas por terem diferentes amostras e critérios de avaliação, outras pesquisas também identificaram aspectos importantes que não apareceram neste estudo em particular.
Nelas, também aumentaram a suscetibilidade à ideação suicida fatores como exaustão, isolamento social, e abuso de álcool. Estudos nos Estados Unidos mostram uma forte prevalência do comportamento em populações afrodescendentes e de origem na América Latina.
Ainda pessoas com solidão preexistente, em sofrimento psiquiátrico e com menor sentimento de propósito na vida, apareceram como em maior risco de desenvolver ideação suicida e também planejamento de suicídio durante a pandemia.
O Elsa-Brasil é uma investigação multicêntrica de coorte (estudo que acompanha os participantes por vários anos) que inclui 15 mil funcionários de seis instituições públicas de ensino superior e pesquisa das regiões Nordeste, Sul e Sudeste do Brasil. A pesquisa tem o objetivo e investigar a incidência e os fatores de risco para doenças crônicas, em particular, as cardiovasculares e a diabete. As doenças relacionadas à saúde mental são fatores indiretos de doenças crônicas.
Além de Pedro Bacchi, o artigo com os resultados da pesquisa sobre ideação suicida é assinado por outros pesquisadores do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da FMUSP, e integrantes do Centro de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas do Hospital Universitário da USP.
Mais informações: e-mail pedrobacchi@gmail.com
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