Livro mostra a hipocrisia, o horror e a brutalidade das últimas décadas de vigência da escravidão

Geminiana e seus filhos: escravidão, maternidade e morte no Brasil do século XIX destaca o famoso caso da Baronesa do Grajaú, que apesar da sua conhecida brutalidade foi absolvida da acusação de morte de uma criança negra e escravizada.

 Publicado: 29/11/2024 às 16:10
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“O julgamento da Baronesa”, óleo sobre tela por Luís Moraes, retrata o episódio ocorrido no Maranhão no século 19, em exibição no Memorial do Ministério – Imagem: Reprodução Autos do processo-crime da Baronesa de Grajaú 1876-1877/MPMA

 

Os professores Maria Helena Pereira Toledo Machado, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Antonio Alexandre Isidio Cardoso, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), lançam no próximo sábado, dia 30 de novembro, o livro Geminiana e seus filhos: escravidão, maternidade e morte no Brasil do século XIX. A obra aborda o caso que ficou conhecido como crime da Baronesa do Grajaú, cujo nome era Anna Rosa Viana Ribeiro. Ela foi acusada da morte do menino Inocêncio e, após um longo processo criminal, foi absolvida. “Este livro que escrevi em coautoria com Alexandre Cardoso documenta os muitos desafios que enfrentamos ao tratarmos do tema gênero, raça, classe e aquisição da liberdade na sociedade brasileira das últimas décadas de vigência da escravidão”, diz Maria Helena.

O caso

Livraria Martins Fontes

Naquele ano de 1876, em menos de um mês, dois meninos escravizados, Inocêncio e Jacinto, com idades entre 6 e 8 anos, foram mortos em circunstâncias duvidosas na mesma casa localizada em São Luís, capital da província do Maranhão. Jacinto, o mais novo, nunca teve sua morte investigada. Já a morte de Inocêncio só foi averiguada devido à desconfiança e insistência de sua mãe, Geminiana, que seguiu o cortejo até o cemitério e exigiu a abertura do caixão. Foi então constatada uma série de ferimentos e contusões no corpo de seu filho. Com as provas de maus-tratos foi aberto um inquérito que, apesar das provas contundentes, terminou com a absolvição de Anna Rosa Viana Ribeiro, uma senhora branca da alta sociedade que era conhecida pelos seus métodos cruéis no tratamento aos seus subordinados. “Além de o livro ter como objetivo reconstituir a sociedade escravista e problematizar seus aspectos mais opressivos, quisemos também trazer ao público um texto narrativo, muito direto e objetivo, que não esconde ou suaviza os aspectos mais brutais do caso central”, completa Maria Helena.

Para o professor Antonio Isidio, o que torna os casos de Inocêncio e Jacinto ainda mais cruéis é o fato de ser de conhecimento de todos que a proprietária era conhecida como torturadora de pessoas. Na época, ninguém impediu que ela comprasse os meninos para “dar de presente” para seus filhos que iriam retornar de uma temporada de estudos na Europa. “O caso demonstra, antes de tudo, um absoluto desprezo à vida de crianças pretas, ou melhor, “escravinhos”, como cinicamente aparecem descritos em vários documentos. Por outro lado, é preciso dizer que a grande repercussão da morte, sobretudo de Inocêncio, ganhou as ruas e a boca do povo pela atividade rebelde de mulheres trabalhadoras das ruas, provavelmente lavadeiras e vendedoras de tabuleiro. “A exemplo de Geminiana, essas mulheres também viram, no cemitério, o corpo do menino morto coberto de lacerações. Deu-se início então a um vozerio que se espalhou rapidamente por toda a cidade na época”, comenta Antonio Isidio.

Processo criminal

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A pesquisa para o livro foi feita através de uma minuciosa análise de fontes bibliográficas tendo como base o processo de 800 páginas que incriminou a Baronesa do Grajaú e também de inventários, cartas de alforrias, certificados de compra e venda de escravos e atestados de óbitos, que foram fundamentais para a reconstrução da história da família sob o ponto de vista de Geminiana e da avó dos garotos de nome Simplícia. “Nosso objetivo foi reconstruir parte dos tortuosos caminhos da maternidade e da infância de Geminiana e seus filhos com muito cuidado e respeito, abrindo trilhas para o estudo de detalhes sobre experiências de mulheres e crianças no âmbito local, sem descuidar da conjuntura mais ampla inscrita nas décadas finais da instituição escravista no Império”, descreve Antonio Isidio.

“O livro é sobre a história de uma família afrodescendente atravessada pela escravidão, pela alforria e pelas limitações do gozo da liberdade em uma sociedade escravista e racista como a brasileira e, especialmente, a maranhense. É, portanto, também, uma história da sociedade escravista, de seus códigos, posturas, alianças familiares e políticas, suas formas de pensar, viver e oprimir aqueles sob seu domínio. Assim, o que contamos é uma história de opressão e escravidão, que continua a nos assombrar. Essa é, portanto, a história de toda a sociedade brasileira”, completa Maria Helena.

O lançamento do livro será às 17 horas, na Livraria Megafauna, na Avenida Ipiranga, 200 – loja 53, na região central de São Paulo. Durante o evento haverá uma roda de conversa com a mediação do historiador Rafael Domingos de Oliveira, doutorando em História pela Unifesp.


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