Dinheiro digital: pesquisa sobre criptomoedas inaugura novo ramo de estudos no direito

O trabalho, que recebeu o Prêmio Capes de Tese e será lançado como livro, também investiga a mumbuca, uma moeda social criada pela Prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro

 14/09/2022 - Publicado há 2 anos
Por
Moeda social mumbuca, criada pela Prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro, pode ser acessada por cartão ou aplicativo – Foto: Elsson Campos/Prefeitura de Maricá

 

As criptomoedas são moedas virtuais que geralmente não possuem uma organização centralizadora. A chegada das primeiras corretoras especializadas nessa tecnologia no Brasil na década passada gerou uma grande movimentação na busca por investimentos, embora não haja uma legislação específica para o funcionamento delas no Brasil. Se não há leis para validar o seu uso, por que mesmo assim as pessoas confiam ao ponto de aceitá-las em troca de mercadorias e serviços?

Camila Duran – Foto: Reprodução/Direito USP

Em sua tese de doutorado, o pesquisador Daniel Steinberg investigou os aspectos jurídicos que trazem algumas respostas para essa questão. O trabalho também aborda outras moedas paralelas, como a mumbuca, que não é uma criptomoeda, mas sim dinheiro eletrônico adotado como meio de pagamento pela Prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro. De acordo com a orientadora do projeto, a professora Camila Villard Duran, da Faculdade de Direito da USP, a tese de Daniel “inaugura um ramo interdisciplinar para pensar a moeda”. A pesquisa recebeu o Prêmio Capes de Tese 2022 como a melhor na área do direito e deverá ser lançada como livro até o próximo mês de novembro.

Segundo Steinberg, o Direito atua sobre as práticas monetárias de três formas: pelas normas consensuais, pelas normas impositivas e pelas normas instrumentais. As impositivas são estabelecidas por leis. O real, por exemplo, é a moeda oficial do Brasil porque a lei vigente determina isso. O artigo 43 da Lei de Contravenções Penais proíbe que o cidadão recuse receber o valor em real por serviços ou produtos vendidos no território nacional, já que o real é a moeda de curso legal.

Daniel Steinberg – Foto: Reprodução/LinkedIn

As normas instrumentais são próprias do direito privado, como as que estão previstas no Código Civil. Elas dependem de contratos com a concordância das partes envolvidas. As normas consensuais, por sua vez, não estão na legislação estatal, mas são importantes para regular as relações sociais. “Pode ser que elas até estejam escritas no código de ética da associação comunitária, por exemplo, mas elas não fazem parte do direito estatal público e privado”, explica Daniel.

As normas consensuais são importantes para a implementação das moedas paralelas, já que nenhum brasileiro é obrigado a aceitar qualquer outra moeda que não seja o real. Por esse motivo, elas podem ter maior ou menor força em alguns grupos sociais. A pesquisa encontrou um recorte de gênero no qual a economia solidária está mais presente: em Maricá, a maior parte das pessoas que utilizam a mumbuca são mulheres.

Já no caso das criptomoedas, a confiança dos usuários está relacionada à segurança proporcionada pela tecnologia blockchain, que é um banco de dados que autentica as transações. Uma moeda descentralizada precisa que de 80% a 90% dos usuários aceitem as operações, o que varia de acordo com o protocolo de cada rede.

A professora Camila Duran, que orientou o projeto, aponta que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) estabelece parâmetros para enquadrar algumas emissões de criptomoedas como valor mobiliário, mas ainda não há uma regulação das corretoras que trabalham com elas. As moedas virtuais podem ser muito úteis para a população, mas faltam mecanismos de prevenção contra crimes como a lavagem de dinheiro.

 

Moeda social mumbuca

A Lei nº 12.865, de 2013, criou o conceito de dinheiro eletrônico. Embora não mencione os bancos comunitários, o dinheiro eletrônico foi a forma pela qual as moedas sociais desses bancos passaram a ser criadas, como no caso do Banco Mumbuca.

A grande vantagem de ter bancos comunitários com moeda própria é que o uso dela fica restrito a uma localidade específica. A mumbuca, por exemplo, só é aceita dentro do município fluminense. “Isso permite que a riqueza da cidade circule mais entre os moradores de Maricá”, destaca Daniel.

Mais de 40 mil pessoas recebem em mumbuca através do auxílio do Programa de Renda Básica de Cidadania (RBC). O trabalho de convencimento é essencial, uma vez que a lei diz que os comerciantes podem recusar esse tipo de pagamento.

Ao contrário das moedas sociais, a grande vantagem das criptomoedas é a de possuir alcance internacional. “Isso permite que um migrante faça remessas para o seu país de origem, por exemplo”, acrescenta Daniel. No entanto, com exceção dos habitantes de El Salvador, onde o bitcoin (a primeira criptomoeda descentralizada do mundo) tem curso legal, ninguém é obrigado a aceitá-las como forma de pagamento.

 

Um tema a ser explorado

O tema do dinheiro é pouco explorado nas ciências jurídicas. Décadas atrás, juristas como o americano Arthur Nussbaum (1877-1964) e o brasileiro Arnoldo Wald estudaram como o direito deveria tratar a perda de valor das moedas, que é uma dúvida frequente quando se assina um contrato. Após a década de 1980, o assunto foi deixado para os economistas, pois não surgiam outros problemas jurídicos relevantes. Todavia, o debate agora precisa ser retomado devido ao surgimento de outras formas de dinheiro.

+ Mais

Criptomoeda como moeda oficial representa avanço para a economia, mas requer cuidados

Transporte público gratuito beneficiaria população com baixa renda em São Paulo

Criptomoedas podem proporcionar inclusão financeira

A pesquisa foi realizada através de questionários respondidos pelos usuários dessas moedas. Além dessa etapa, Daniel fez um resgate histórico de como a moeda foi tratada pelos juristas desde o século 13. O pesquisador explica que havia uma coexistência de moedas privadas e estatais de maneira desorganizada até o século 19. A partir da segunda metade do século 19, quando se constituem os Estados-nação, houve um processo de centralização. Nessa etapa, surgiram as moedas estatais obrigatórias e as moedas privadas tornaram-se menos importantes ou deixaram de existir.

No final do século 20 e início do século 21, as novas moedas paralelas foram criadas com a ajuda das novas tecnologias, mas, dessa vez, foram criados mecanismos jurídicos para elas coexistirem com as moedas estatais, que é justamente o tema do estudo.

O trabalho foi discutido em alguns grupos de pesquisa, como o Centro de Direito Bancário (CDB) da USP, do qual Daniel faz parte. Um livro com os resultados da pesquisa será publicado em novembro pela editora Lumen Juris.

Mais informações: e-mail danielfsteinberg@gmail.com, com Daniel F. Steinberg


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.