O impacto das obras de arte na imprensa oitocentista sobre a cultura visual do País

À medida em que se consolidava uma indústria gráfica, aumentava a circulação de publicações ilustradas que auxiliavam na divulgação de obras, artistas, padrões e valores estéticos para um público amplo, ensejando um projeto cultural e artístico para a sociedade carioca do século 19

 23/01/2024 - Publicado há 3 meses     Atualizado: 29/01/2024 as 13:40

Texto: Ivanir Ferreira

Arte: Joyce Tenório*

Havia uma ressonância entre as imagens disseminadas em revistas e jornais do Rio de Janeiro e o consumo e a produção artística e cultural da época. Ilustração “A leitura atenta" – quadro de Karls Gusow (1843-1907), publicada na revista A Estação, Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1888. Coleção Casa Rui Barbosa- Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de domínio público

Muitos textos machadianos, sejam eles romances, contos e ou poemas, foram produzidos a partir de um olhar atento às artes visuais. O Soneto circular (1895), no qual o escritor retrata uma mulher ruiva com um livro pousado no colo, foi inspirado em um quadro que Machado de Assis ganhou de amigos, A dama do livro, do pintor italiano Roberto Fontana. Além dele, o escritor e dramaturgo Arthur Azevedo, dentre outros, também foram influenciados por algumas expressões artísticas. Azevedo consultava com frequência e se inspirava em estampas reproduzindo obras de arte publicadas em jornais e revistas da imprensa brasileira oitocentista. Uma pesquisa sobre História da Arte, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, tratou desse assunto e mostrou que a disseminação de imagens de obras de arte feita pela imprensa carioca contribuiu para a formação de uma cultura visual na segunda metade do século 19.

“Havia uma ressonância (espelhamento) entre as imagens que estavam circulando nos jornais e o consumo e a produção artística cultural da elite brasileira”, relata Marianne Farah Arnone, historiadora e autora da tese As Belas Artes traduzidas: imagem, imprensa e a formação da cultura visual no Rio de Janeiro, século XIX. Segundo a pesquisadora, a arte era um dos temas mais explorados pela imprensa no Rio de Janeiro. Periódicos como o Jornal das Famílias, Diário do Comércio, Diário Ilustrado, A Estação, Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro, Revista Popular, entre outros, dedicavam parte significativa de suas pautas à divulgação de artistas, de exposições e publicação de críticas, além da reprodução de obras e de anúncios para a comercialização de obras de arte em forma de estampas gráficas.

Marianne Farah Arnone, autora da pesquisa - Foto: Arquivo pessoal
Marianne Farah Arnone, autora da pesquisa - Foto: Arquivo pessoal

“A Rua do Ouvidor era um importante ponto de encontro da sociedade e um dos polos comerciais da região, onde ficavam muitos estabelecimentos de compra e venda de obras de arte e o lugar para onde as pessoas se dirigiam em busca de notícias. Lá, se comercializava de tudo, incluindo estampas gráficas de obras de arte, que eram muitas vezes retiradas das publicações para serem colecionadas, emolduradas e colocadas na parede como objeto de decoração”, diz.

Imagens cruzadas e consumo de estampas de arte no Rio de Janeiro

Para confirmar a tese de que as imagens reproduzindo obras de arte na imprensa foram instrumentos relevantes para a formação de uma cultura visual ligada às artes no Rio de Janeiro, no século 19, Marianne Arnone buscou encontrar cruzamentos, estabelecer diálogos e ressonâncias entre as reproduções das obras divulgadas em revistas e jornais e a produção artística e cultural que se desenvolvia no Rio de Janeiro naquele momento. Dessa maneira, a historiadora procurou investigar os pontos de encontro entre essas imagens e o que se produzia na arte, na literatura e na crítica desse período.

Marianne Arnone explica que nessa mesma época se consolidava uma indústria gráfica no País, havendo, inclusive, um aumento na circulação de imagens e publicações ilustradas. As imagens publicadas auxiliavam na divulgação de obras, de artistas, dos padrões e valores estéticos para um público amplo, que estava ensejando de um projeto cultural e artístico para a sociedade carioca do século 19. “As estampas que reproduziam obras de arte tornaram-se materiais cada vez mais consumidos e incorporados ao cotidiano da sociedade carioca”, diz.

Orientador da pesquisa, o professor Tadeu Chiarelli chama a atenção para a literatura como sendo um dos mais valiosos índices sobre o papel relevante desempenhado pelas imagens em vários setores da vida brasileira. As estampas de reproduções de obras de arte apareciam com frequência citadas em documentos e na literatura do período, como um dos trechos do livro Helena (1876), de Machado de Assis, que mostra que as estampas de jornais eram naturalmente inseridas em suas narrativas.


Na obra, o personagem Melchior (…) depôs o livro sobre a mesa redonda que havia no meio da sala, marcando a lauda com uma velha estampa de jornal (…)


Em Soneto circular (1895), também de autoria de Machado de Assis, ele fez referência ao quadro A dama do livro, do pintor italiano Roberto Fontana, que teve suas obras reproduzidas pelos periódicos da época, o que, segundo a historiadora, “aponta para a importância do papel dos periódicos na divulgação de nomes e obras artísticas e como agentes atuantes no comércio, no lançamento de tendências de modas e na formação de um gosto ligado às artes visuais.”

Machado de Assis teria frequentado e admirado imagens expostas nas lojas da Rua do Ouvidor, demonstrando interesse pelo quadro A dama do livro, relata o estudo. Ao ganhar o quadro dos amigos, como forma de agradecimento, escreve o soneto e o envia aos colegas. Um deles publicou o soneto na Gazeta de Notícias, um jornal carioca de grande prestígio na época. Hoje, o quadro faz parte do acervo machadiano, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.

Já o dramaturgo e escritor Arthur Azevedo, que assim como Machado de Assis, apresentava diversas referências ao consumo desse tipo de imagem em seus textos, foi muito atuante em periódicos que as continham. Ele também possuía uma coleção de estampas com reproduções de obras de arte extraídas de jornais e revistas, como, por exemplo, a estampa traduzindo a tela Primeira missa no Brasil, do pintor brasileiro Victor Meirelles, reproduzida pelo periódico Echo Americano, de 1871, exemplifica a historiadora.

Em Casa de pensão, Aluísio de Azevedo traz o aspecto do consumo visual no ambiente urbano, indicando que a presença de cartazes nas ruas do Rio de janeiro, das imagens nas vitrines das lojas e das portas da redação dos jornais interagiam de forma ativa com seus personagens.

(…) Paiva já não o ouvia, era toda atenção para um cartaz de teatro, que um sujeito pregava na parede defronte (…) à porta das redações de jornais não se podia passar com o povo que se aglomerava para ler as derradeiras notícias do processo, pregadas na parede à última hora (…)

A cultura visual hoje

Chiarelli traçou um paralelo entre o trabalho de Mariane Arnone e o dia a dia. Segundo ele, a historiadora mostrou com sua pesquisa a importância da reprodutibilidade da imagem no cotidiano das pessoas e o papel que as estampas gráficas exerceram na formação da cultura visual do País, desde o século 19.
Segundo o professor da ECA e ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, a atualidade desse estudo reside no fato de que autora chama a atenção para o surgimento de um universo de imagens que hoje nos rodeiam por todos os lados: no cinema, na fotografia e nas redes sociais, o que faz com que vivamos imersos num território de imagens que nos mostra o mundo e que nos ajuda a construí-lo conforme nossas ideologias.

A historiadora avalia que as estampas reproduzindo obras de arte na imprensa no século XIX facilitaram e propiciaram o acesso de um público amplo a uma produção artística. Isso ocorreu inclusive entre artistas e intelectuais, uma vez que o contato com as obras originais em museus e exposições era mais limitado se comparado às estampas reproduzindo essas obras disseminadas pelos veículos de comunicação de massa.
Professor Tadeu Chiarelli, orientador da tese - Foto: Arquivo pessoal
Professor Tadeu Chiarelli, orientador da tese - Foto: Arquivo pessoal

A tese As Belas Artes traduzidas: imagem, imprensa e a formação da cultura visual no Rio de Janeiro, século XIX, defendida em outubro de 2022 na Escola de Comunicações e Artes, recebeu Menção Honrosa do Prêmio Tese Destaque USP de 2023, na grande área do conhecimento Letras, Linguística e Artes, concedido pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP.

Mais informações: com a historiadora Marianne Farah Arnone, marianne.arnone@gmail.com e com o professor Tadeu Chiarelli, tchiarelli56@gmail.com

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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