Anúncio do fim da polícia da moralidade no Irã é preciso ser interpretado com cautela

Função de legislar sobre o uso do hijab teria sido repassada para o Judiciário; protestos não são para transformar o Irã em uma democracia nos moldes ocidentais

 08/12/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 19/06/2024 as 13:04
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Protesto com medidas autoritárias no Irã se espalham pelo mundo. Foto: – Flickr – CC BY-NC-ND 2.0
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Nos últimos dias, circula a notícia de que o Irã teria abolido a chamada “polícia da moralidade”, a Gasht-e-Ershad, após as manifestações e protestos contra o governo em todo o país. A medida pode parecer indicar que o governo iraniano teria cedido às pressões populares. Contudo, Ana Maria Raietparvar, pesquisadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da Universidade Federal Fluminense (UFF), alerta que é preciso ter cautela ao analisar essa situação.

“Houve uma suspensão da polícia da moralidade, mas foi repassada a obrigação de controle, de legislar sobre o uso do véu, para o Judiciário. Então, houve apenas um desvio de onde isso estaria sendo praticado”, afirma a pesquisadora, que argumenta ser “bastante comum, nesses movimentos de protestos e de revoltas populares, os regimes e governos quererem dar ‘migalhas’ para ver se conseguem se manter”.

As reivindicações populares tiveram início em setembro deste ano, com a morte de Mahsa Amini, uma jovem curda que morreu sob custódia da polícia da moralidade após ser presa em Teerã, capital do Irã, por não estar usando o hijab de acordo com o código de vestimenta do país. Após o episódio, protestos eclodiram por todo o Irã, motivados pelo “questionamento do uso do véu, mas que trazem por trás um questionamento por liberdade. É uma disputa contra o Estado por uma questão de repressão e o véu entra no simbolismo disso”.

 

A obrigatoriedade do uso do véu, o hijab, é vigente desde o início da República Islâmica no Irã, no final da década de 1970, quando “deixa de ser uma questão de religiosidade, da relação pessoal com a religião, para se tornar uma imposição do Estado”, diz Ana Maria. A questão é que o uso do hijab é recomendado pelo Islamismo e se tornou obrigatório com a República dos Aiatolás.

Mulher. Vida. Liberdade

Sob o slogan “Mulheres. Vida. Liberdade”, mulheres e homens iranianos protestam contra a obrigatoriedade do uso do véu, mas também contra as repressões do regime iraniano. Segundo a professora de História Árabe da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Arlene Clemesha, a obrigatoriedade do uso do hijab é símbolo de uma série de repressões impostas pelo governo iraniano, principalmente, sobre as mulheres. Um regime que “busca estabelecer a sua identidade e força com base no controle da vestimenta da mulher”.

Arlene argumenta que “o fato do regime fundamentalista islâmico xiita aplicar a sua repressão com símbolos islâmicos e simbologias do que seria a sua forma de interpretar o Islamismo leva uma parcela da população a reagir contra”.

A questão, explica a professora, é a imposição do véu pelo governo iraniano. “Existe, claro, todo um segmento da população iraniana que é religiosa, que vê no uso do hijab uma escolha , uma opção, e, até mesmo, mulheres que protestam para que tenham o direito de escolher entre usar ou não o véu. Porque, segundo o Islã, o hijab é uma recomendação e esse regime autoritário e fundamentalista transformou essa recomendação em uma exigência. E a questão está justamente nisso. Não é o véu em si, mas todo o sistema de repressão que recai sobre todo o país, mas, principalmente, sobre as mulheres”, afirma a professora.

Movimento popular espontâneo e legítimo

Para Arlene, os protestos que se iniciaram depois da morte de Mahsa Amini são um movimento espontâneo e legítimo da população em busca de mudanças no atual regime. É um “movimento revolucionário incipiente que está se colocando, forçando os limites, buscando uma mudança” e voltado para “o que são as raízes da democracia”.

Contudo, a professora alerta que “não podemos supor, imaginar, especular que seria pela transformação do Irã numa democracia à moda de uma democracia ocidental. Isso não significa que essas pessoas que protestam queiram transformar o Irã em um país ocidentalizado. Eles se orgulham de ter uma tradição cultural mulçumana de milhares de anos”.

Trata-se, como defende a professora, de um movimento amplo pela eliminação das características mais repressivas do regime, “de dentro da população, espontâneo, legítimo no sentido de que ele não é criado, fabricado ou falsificado, de intervenção externa penetrando a sociedade iraniana. É fruto, realmente, de um longo processo de revoltas, de demandas, de busca por mudanças”. Mudanças que apontam para a liberdade de expressão, igualdade de direitos, “a possibilidade de organização, de, portanto, ter, inclusive, um amplo espectro de forças políticas e sociais representadas no país. São as bases de uma democracia”.

Manifestações populares na Copa do Mundo

Durante a Copa do Mundo no Catar, jogadores e torcedores iranianos se manifestaram a favor dos protestos no Irã e contra o governo. “A manifestação dos jogadores foi um gesto simbólico importante”, afirma Arlene, que diz ver nessas ações uma contribuição para o fortalecimento dos protestos nas ruas. “Digamos que é o mínimo que eles poderiam fazer e o risco não é tão grande face ao risco que as pessoas nas ruas estão tomando”.

Essas manifestações também contribuem para que a atual conjuntura iraniana permaneça em evidência. “A manifestação na Copa contribui, ao meu ver, sim, para que o mundo não esqueça a pauta. Não esqueça de dizer ‘olha ainda estão protestando’, homens estão protestando, jogadores estão protestando’”.

Nesse sentido, os brasileiros, de acordo com a professora, são capazes de entender melhor os protestos e suas nuances do que países europeus e os Estados Unidos, que “tendem a igualar todas as vozes de protesto, como se fosse um suposto protesto anti-islâmico, anti-hijab, anti-repressão generalizada. Generalizações que são feitas a partir do olhar de fora para dentro dos países do Norte para o Irã, que nós, no Brasil, podemos evitar”, devido à posição histórica, cultural e mundial que “nos permite olhar para o Irã com muito mais proximidade e menos filtros de deturpações, da superioridade europeia histórica, colonialista”, conclui Arlene.

 


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