Alguém cantando

No ano em que a USP comemora 90 anos, podemos refletir sobre as vozes potentes que se instalaram nos palcos, mas que todos os dias ecoavam nos corredores, nos canteiros e praças da Universidade

 Publicado: 10/05/2024

Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir

Composição: Caetano Veloso

Mulher branca com olhos e cabelos castanhos. Seu cabelo está preso por uma presilha do lado esquerdo da imagem. Ela veste uma blusa preta.
Christiane Souza, copista e arquivista musical do Acervo Coralusp

Há mais de 50 anos ouvimos alguém cantando no campus da Universidade de São Paulo, ouvimos vozes que ecoam melodias, exercícios vocais, sons harmoniosos, vozes potentes, vozes tímidas, vozes em arranjos primorosos e que inevitavelmente fazem parte da nossa história, mesmo ao longe.

A música instaura em nós uma relação profunda com o meio, ampliando nossa experiência cultural, ela é possibilidade de escrita da memória através do corpo, pois ele reage a música: ele dança, se emociona, paralisa e ativa o que de mais precioso possuímos, nossas recordações, que se misturam no tempo. Na verdade, com a música sentimos que o tempo não se contabiliza em horas, dias, anos, mas em vida, em experiências emocionais.

O Coralusp ensaiou, por mais de 40 anos, no prédio onde fica hoje a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU). Instalado no quarto andar, suas vozes ecoavam, as vozes chegavam aos trabalhadores de todos os andares, à vizinhança, à praça do Relógio, ao sindicato da USP. Ainda hoje é comum na memória desses trabalhadores o som de alguém cantando ao longe, eles não lembram exatamente da música, das palavras, mas do som potente de vozes ressignificando o tempo da pausa, do trabalho, tecendo os intervalos da vida na Universidade.  

No ano em que a USP comemora 90 anos, podemos refletir sobre as vozes potentes que se instalaram nos palcos, mas que todos os dias ecoavam nos corredores, nos canteiros e praças da Universidade. As vozes que cada coro ressoava, coros repletos de estudantes, trabalhadores, pedreiros, advogados, faxineiras, professores produziram lembranças de amores perdidos, de lutas ganhas, de prosas cotidianas, lembranças capazes de fazer com que o sujeito não revisite o passado, mas sim que o passado se fragmente no presente. 

A música permite que memória, experiência e história (Walter Benjamin, Sobre o Conceito de história, 1949) se entrelacem no presente, pois aqui o passado não é tempo morto e sim elaboração de vivência. 

Há neste exercício memorialístico a certeza de que a vida acontece nos entremeios, nos ensaios, nos erros, nas retomadas, na desafinação, na generosidade dessas vozes que pulavam a janela do quarto andar e inundavam de sons nosso cotidiano. 

Ensaio do Coralusp em 1987 – Foto: Rosa Gauditano para Revista Good Year

Hoje, essas vozes habitam outros espaços, como o Centro Cultural Camargo Guarnieri e se você se deparar com as vozes de um ensaio, respire fundo, ouça e tenha certeza de que essas vozes cantam para enriquecer suas lembranças.

Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém

Composição: Caetano Veloso 

 

Texto escrito por Christiane Souza, copista e arquivista musical do Acervo Coralusp.


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