Desde 1940, cientistas se debruçam sobre os mistérios que envolvem o Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas ainda não conseguiram explicar como e por que o transtorno acontece. Nesse universo, um outro aspecto desconhecido chama atenção: a batalha das mães de autistas.
Responsável pela pesquisa As dores das mães com filhos com deficiência, a psicóloga Ana Celeste de Araújo Pitiá afirma que essas mulheres acumulam a dor da perda do “filho ideal” e do abandono com a sobrecarga emocional. Especialista em psiquiatria e acompanhamento terapêutico pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP, Ana Celeste garante que esse é um cenário que se repete, pois na maioria dos casos são as mulheres que precisam entrar na luta para que as crianças recebam um tratamento digno, deixando as próprias necessidades para trás.
Para a pesquisa, a psicóloga avaliou as experiências de 240 mães, com idades entre 32 e 51 anos, que se dedicam aos cuidados dos filhos especiais e que usam o ODAPP, um aplicativo que conecta famílias de crianças autistas a profissionais da área da saúde. Os resultados do estudo ainda estão em fase de publicação, mas a especialista adianta que identificou “um alto nível de abnegação dessas mães ao voltarem-se mais para os seus filhos, esquecendo-se muitas vezes de si próprias”.
O problema se agrava, observa a pesquisadora, pois o acúmulo de funções e o pouco tempo para si mesmas aumentam a tensão e podem fazer essas mães entrarem em colapso. Tudo, segundo Ana Celeste, pela falta de apoio profissional para lidarem com esse momento. Por isso, a psicóloga alerta sobre a necessidade de programas de apoio psicológico a essas mulheres nas redes públicas de saúde. Ana Celeste afirma que muitas vezes essas mães encontram apoio em ONGs que “não dão conta da demanda”. Para a especialista, “não poderia existir atendimento aos filhos com deficiência sem ter, paralelamente, um cuidado a essas mães”.
Mãe de João Pedro, criança de dez anos que foi diagnosticada com um dos graus mais graves do TEA, Gabriela Maestri Bailon conta que viu o filho se desenvolver como qualquer outra criança nos dois primeiros anos de vida, mas que, depois, regrediu, desenvolveu deficiência intelectual e parou de falar. “Ele começou a aparentar que não estava ouvindo o que eu falava. Deixou de dar tchau, de jogar beijo, de bater palma e de falar as palavras que ele falava antes”, relata Gabriela.
Desde então, a mãe de João Pedro enfrenta uma rotina de tratamentos, nos cuidados com a casa e com o filho. Afirma que, conforme a lista de afazeres crescia, o tempo para si mesma foi ficando para trás. “Minha rotina foi restabelecida dentro da rotina dele. O principal hoje são as terapias e, nesses horários, eu tento fazer alguma coisa para mim, porque é quase impossível. A gente meio que se deixa de lado, mal vai ao médico. Ir ao salão fazer a unha é a coisa mais rara do mundo”.
Além do abandono das próprias necessidades, Gabriela também enfrentou a rejeição do pai da criança, que foi embora após o diagnóstico. Afirma diariamente sentir o peso de lidar sozinha com a luta para dar ao filho tudo o que precisa e ainda superar o medo das surpresas que o futuro reserva. “Tenho medo da adolescência, medo de não dar conta dele adulto, de ele não melhorar o suficiente para ser independente. Eu fiquei sozinha e tenho medo até hoje de não dar conta. Todos os dias penso, ‘ufa, dei conta desse dia’”.
Pais não suportam perda do “filho ideal” e abandonam a família
A Organização Mundial da Saúde estima que cerca de 70 milhões de pessoas no mundo são afetadas pelo Transtorno do Espectro Autista, dois milhões apenas no Brasil. Em meio às estatísticas, a história de Gabriela não é a única. Segundo dados divulgados pelo Instituto Baresi, em 2012, no Brasil, cerca de 78% dos pais abandonaram as mães de crianças com deficiências e doenças raras, antes dos filhos completarem 5 anos de vida. Segundo a psicóloga Ana Celeste, o motivo desse abandono, na maioria dos casos, é explicado pelos maridos, pais dessas crianças, que alegam não conseguirem suportar o luto da perda do “filho ideal”, por isso “dão um apoio muito frágil ou simplesmente abandonam”.
A falta de estrutura para lidar com o assunto deve ser considerada por profissionais que trabalham com saúde mental da criança e por professores de educação infantil, antes de levar essas preocupações para a família. É o que orienta o professor Erikson Felipe Furtado, coordenador do Ambulatório de Transtornos do Espectro Autista e Deficiência Intelectual (PQI-TEA), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP. Para o professor, esses profissionais devem “sempre ser muito cautelosos ao levar essas preocupações para a família, pois, em muitos casos, os responsáveis reagem mal e chegam a negar o problema”.
Furtado relata ainda que muitos são os pais que iniciam uma busca angustiante por tratamentos e soluções, “às vezes sem fundamentação ou base científica, frequentemente retardando uma conduta realmente apropriada para a criança”. Essas questões, segundo o professor, justificam a necessidade de apoio contínuo aos pais dessas crianças. Questões essas que podem ser agravadas ao longo do crescimento da criança, com mudanças no contexto de vida, “as necessidades e o tratamento podem se modificar”, garante o especialista.
Live para as mães e atendimento às famílias
Para atender essas famílias, desde 2013, o Ambulatório de Transtornos do Espectro Autista e Deficiência Intelectual do HCFMRP presta orientação e apoio aos cuidadores das crianças através de equipe de médicos especialistas em psiquiatria da infância e adolescência e profissionais das áreas de psicologia e terapia ocupacional.
O ambulatório faz parte do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do HCFMRP e atende os casos encaminhados pela rede pública de saúde da região de Ribeirão Preto. Conta o professor Furtado que as crianças e adolescentes com TEA são avaliadas “periodicamente, em consultas regulares, com uso de instrumentos de auxílio diagnóstico e de avaliação funcional”. Os responsáveis pelas crianças, segundo o professor, também recebem orientação “quanto ao uso de medicamentos, quando necessário, e para o encaminhamento para terapias apropriadas oferecidas na rede pública”.
A psicóloga Ana Celeste também realiza assistência virtual às mães de crianças autistas. Por meio de lives no Instagram, em parceria com a advogada Lidiano Baldo, Ana Celeste participa de encontros on-line todas as quartas-feiras, às 20 horas. A pesquisadora conta que a ideia é, no futuro, criar um grupo de apoio para falar sobre as dores de mulheres em geral em rodas de conversas on-line, pois “muitas das questões que as mães de autistas sofrem, mães de crianças chamadas típicas também sentem”.
Ouça no player acima a entrevista completa da psicóloga Ana Celeste, da mãe Gabriela Maestri e do professor Erikson Furtado ao Jornal da USP no Ar – Edição Regional.
Mais informações: anaceleste@grupocomviver.com
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